quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Você só tem um dia!




Ele andava apressado e distraído entre a multidão que voltava para suas casas. Havia tido um longo dia de trabalho e se dirigia até um estacionamento onde havia deixado seu carro. Os rostos e vozes misturavam-se em meio a todas aquelas pessoas igualmente apressadas e cansadas. Ele tinha o olhar perdido, olhava tudo e não distinguia o que via; seguia cansado e entregue a seus próprios pensamentos.

De repente, ele viu uma moça de seus trinta e tantos anos vindo em sua direção. Não era bonita, mas tinha uma presença marcante, uma aura de mistério que o absorveu. Ela olhava fixamente para ele. Tão fixamente, que o assustou. Não parecia um flerte, era mais que isso. Ele não sabia explicar. Ao perceber que a moça se aproximava, teve vontade de fugir, correr dali. Confessou a si mesmo que sentiu medo daquele olhar.

Mas ele não correu. A moça veio até ele. Olhou dentro de seus olhos e lançou:

- Você só tem um dia!

- Desculpe?

- Você só tem um dia. Não queria assustá-lo, mas não consegui conter-me. Senti algo tão forte quando o vi, não é que eu queira saber dessas coisas, mas eu sei. Simplesmente vejo. E eu vi você. Amanhã, exatamente nesse horário, 18:53, você dará seu último suspiro.

Ele arregalou os olhos. Tentou dizer alguma coisa, mas as palavras não saíam. Não conseguia articular as frases e, assustado, soltou uma espécie de grunhido.

- Desculpe, moço, sei que o estou assustando, mas senti que devia falar-lhe. Eu vi assim que meus olhos cruzaram com os seus. Será rápido, fulminante. Desculpe por lhe falar isso.

- Moça, eu não a conheço, achei a sua abordagem muito inapropriada e devo lhe dizer que você é uma maluca. Eu não me importo com o que você viu porque eu simplesmente não acredito nessas coisas. Passe bem!

Virou-se e foi embora. Deveria ser uma louca, não daria crédito àquilo. Seguiu para sua casa, seu refúgio depois daquele dia exaustivo. Não demorou a adormecer. Acordou no dia seguinte apressado, como sempre. Tomou um banho, engoliu seu café da manhã e vestiu-se para trabalhar. Enquanto dava o nó em sua gravata, lembrou-se da mulher do dia anterior. As palavras dela: "você só tem um dia". Bobagem, pensou. Continuou a arrumar a gravata. Viu sua imagem no espelho. Bem-arrumado, parecia alguém importante. "Você só tem um dia". E se fosse verdade? Desperdiçaria seu último dia trabalhando?

Pegou o telefone e discou um número, mas desligou. Inventaria alguma desculpa para faltar ao trabalho, mas para quê? Se fosse seu último dia, que importância teria aquilo? Tirou as roupas de trabalho e vestiu bermuda, camiseta e chinelos.

Um filme de sua vida veio à sua mente. Deveria ser mesmo verdade que as pessoas veem suas vidas quando estão à beira da morte. Ele não sabia se iria morrer, mas viu imagens suas; como um filme, viu sua vida retroceder até o começo. Ele era expectador de sua própria existência naquele momento.

Assistiu à sua infância: uma infância comum, sem regalias, mas boa. Era o mais novo de três irmãos, os pais não tinham muitas posses, mas ele tivera uma infância relativamente feliz. Naquela hora, tomara consciência disso. Viu-se adolescente, cheio de conflitos e complexos, tentando desafiar aos pais e a outras figuras de autoridade. Riu de si mesmo, ou de sua imagem  que aparecia naquele filme. E viu-se adulto. As relações artificiais que construíra. A busca por poder e dinheiro, como meio de resolver os próprios complexos. Os relacionamentos mornos, desprovidos de paixão. Viu a noiva que abandonara às vésperas do casamento, por medo do compromisso, da responsabilidade em compartilhar sua vida com alguém. Sentiu desprezo pelo personagem de si mesmo a que assistia. Percebeu que já não gostava da pessoa que havia se tornado. Vivera até ali trinta e cinco anos, mas havia realmente vivido? Não tivera filhos, não escrevera um livro e sequer plantara uma árvore. Se fosse seu último dia, seria o fim de uma existência medíocre, com ares de dissimulada importância.

Segundo a vidente maluca, sua morte seria às 18:53. Restavam-lhe cerca de dez horas. Suas supostas últimas horas e o que faria? Saltar de paraquedas? Gastar todo o seu dinheiro com luxos desnecessários? Entregar-se a momentos de pura luxúria, morrendo nos braços de lindas (e caras) garotas de programa? Tudo isso parecia supérfluo, como sua própria vida lhe parecia agora.

Decidiu simplesmente sair. Deixou o carro em casa e foi andando. Há muito tempo não experimentava o prazer de fazer longas caminhadas. Andou sem rumo, sentindo uma onda de vigor invadir-lhe quando os raios de sol tocaram sua face. Quando percebeu, estava em um parque. Deitou na grama. Riu ao lembrar que, àquela hora, deveria estar preso no escritório. Mas estava ali, curtindo um momento de delicioso ócio. Adormeceu na relva. Dormiu profundamente. Quando acordou, já era hora do almoço. Teria um almoço tranquilo, nada de garfadas apressadas como de costume. Sua suposta morte só seria dali a mais de seis horas.

Comeu em um restaurante simples, que ele não frequentaria em um dia normal. Mas aquele não era um dia normal. Era o último dia de sua vida e entendeu que precisava de novas experiências. Surpreendeu-se com o sabor da comida, que fazia-lhe lembrar de sua mãe. Se continuasse vivo, precisaria voltar ali mais vezes.

Voltou a caminhar após o almoço, um andar sem pressa, sentindo o contato dos pés com o chão. Pensou no quanto aquilo tudo era estranho, a consciência da pretensa finitude da própria vida em questão de horas. As pessoas não deveriam jamais saber quando vão morrer. Ou deveriam? Assim teriam a chance de serem melhores, supôs.

Ainda restavam algumas horas até a fatídica 18:53. Resolveu andar de teleférico, ver a vida de cima em seus últimos momentos. Do alto, contemplou a cidade, as pessoas indo e vindo, a vida acontecendo. Sentiu-se vivo, logo quando estava supostamente à beira da morte. Em todo o tempo que morava na cidade, e já devia fazer dez anos, fez esse passeio em torno de quatro vezes. E assim mesmo, apenas para impressionar as garotas que levara ali.

Ao descer do bondinho, cruzou com uma mulher que lhe chamou a atenção. Era bonita, tinha o sorriso fácil e olhava para ele, dando típicos sinais de interesse. Vivera uma vida sem grandes paixões, seria possível apaixonar-se nos instantes finais? Trocou olhares com a moça, mas, por fim, foi embora. Não queria algo fugaz como sempre tivera. Enfim sentiu vontade de ter um romance duradouro, mas não tinha garantias nem em relação à própria existência naquela hora.

Quando o relógio marcou 18:00, ele decidiu ir à praia. Se tinha a opção de escolher um lugar para morrer, então que fosse perto do mar. Ele sempre gostou do mar. Quando mais jovem, aventurou-se como surfista. Atividade que foi sendo deixada de lado à medida em que tornava-se homem sério, de negócios. Não tinha mais tempo para o surfe, assim como para várias das coisas de que um dia gostara.

Andou perto das ondas por vários minutos. Às 18:50, deitou-se à beira do mar, sentindo o vaivém das ondas em suas pernas. Se a vidente estivesse certa, seu fim estava muito próximo. 18:51. O coração acelerou de ansiedade. Marcar hora com a morte não era algo agradável. 18:52. As batidas aceleradas do seu coração começam a acalmar-se. Deveria ser a calmaria da morte, a serenidade que muitas pessoas experimentam quando estão perto do fim. Olhou o relógio uma última vez. 18:53. Era chegada a hora. Fechou os olhos e tentou não pensar, deixar a cabeça leve. Fechou os olhos e esperou. Esperou. Esperou.

O relógio marcou 18:54, 18:55, 18:56, 18:57, 18:58, 18:59. Às 19:00, ele levantou-se. Não acontecera nada. Ele continuava ali. Vivo, intacto. Jamais deveria ter dado ouvidos a uma maluca. Perdeu o dia por causa de uma visão de uma desconhecida. Mas... Perdeu? Será mesmo? Refletiu sobre suas últimas horas. O suposto encontro com a morte, foi, na verdade, um encontro consigo mesmo. Sentiu uma lufada de vida naquele instante. Estava mais vivo que nunca. Só o que morrera ali foram antigos hábitos e valores que ele vinha cultivando. Esses, sim, ele iria enterrar.

13 comentários:

  1. Adorei! Muito legal! Com um enredo simples você conseguiu passar uma mensagem profunda e reflexiva. Gosto de textos assim... Parabéns! :)

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  2. Eu arrepiei com a reflexão final. Não querendo julgar, mas vejo tanta gente precisando de um "encontro com a morte" como esse. Inclusive eu, às vezes nós mesmos fazemos da nossa existência apenas mais uma e não nos damos conta disso até que uma situação como essa nos surpreenda.
    Parabéns <3
    Normal Demais

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    1. Oi, Carol! Às vezes precisamos mesmo de uma sacudida, sair um pouco do automático e despertar para o que realmente importa. Obrigada por sua visita. Bjs <3

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  3. Assim como os conselhos de Don Juan (Carlos Castaneda). Se a morte não nos tocar, ainda podemos. Adorei a leitura. Vou ler mais! Visite meu blog! Beijinhos

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  4. Nossa que texto lindo! É verdade, temos que enterrar hábitos e pensamentos que não nos levam para frente!

    www.universopraticofeminino.com

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    1. É, Sabrina, alguns hábitos que temos devem ser enterrados mesmo ;)
      Obrigada pela sua visita. Bjs

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