terça-feira, 31 de março de 2015

Só sei que nada sei!



Raulzito já dizia: "eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo". Como ele estava certo! O mundo está cheio de gente com razão. Gente que sabe demais, com opinião sobre tudo. Dos buracos negros de Stephen Hawking (contestados pelo próprio mais tarde) a uma improvável partida de futebol entre o Bola Murcha F.C. e o Frangos Pelados.

Seja qual for o assunto, está garantido um acalorado fórum de discussões. Se forem protegidas pelos filtros da internet, então, preparem os ouvidos (ou os olhos, para ler, e dedos, para digitar)! Mais que o nível da discussão, importa ter uma opinião. Manifestar-se sobre qualquer assunto. Bradar uma posição, ainda que ela não seja realmente sua, mas mais uma modinha do momento. Não se trata apenas de ter uma opinião, mas de gritá-la para o mundo e vencer pelo grito. Como se houvesse vencedores na imaginária disputa em que falta bom-senso e sobra ignorância.

Hoje, não ter uma opinião pronta é não se posicionar, é estar em cima do muro. Mudar de opinião, então, é como um diagnóstico de birutice, e aqui falo daquela biruta que se move conforme o vento (daí o termo popular usado como sinônimo de bobice, maluquice, o que acaba dando no mesmo). No afã de ter uma opinião, muitas vezes não refletimos, mas apenas reproduzimos um discurso dominante. A opinião quase vomitada causa alívio imediato e conforto momentâneo.

O mundo anda bipolar demais. Lembra a época da minha infância, em que enxergava o mundo a partir da perspectiva do "bem" e do "mal". O bem era representado pelos heróis e o mal pelos vilões dos desenhos a que eu assistia. O esperado era que, quanto mais amadurecêssemos, mais essas perspectivas excludentes dessem lugar a visões de mundo mais ponderadas. Porque nada existe na sua forma pura. Nem o bem é somente bem e nem o mal é somente mal. Mas não parece ocorrer isso. Não no mundo em que habito. Pode pedir licença para descer agora?

Ideias de certo e errado são vendidas. Padrões são perpetuados. Até ideais de felicidade são disseminados, como se isso não fosse algo tão íntimo. O que agrada à maioria não, necessariamente, agrada a todos. Nem um pote de Nutella (hmmm) satisfaz a todo o mundo! Mas não importa, as minhas opiniões são mais importantes que as suas e, se eu gosto de Nutella, você deve ser um louco se não gostar também (não estou ganhando para fazer propaganda, apenas sou chocólatra rsrs).

A esquizofrenia coletiva que vejo está quase nesse nível. Se, antes, política e religião eram considerados assuntos polêmicos, hoje, esse rol foi consideravelmente ampliado. Tudo gera polêmica. As pessoas são enquadradas, formas de pensar e agir são tiranamente ditadas. Há um fluxo, um contra fluxo e resquícios de humanidade nesse meio. Sobram cobranças, ansiedade e frustrações. Falta autenticidade, porque já não nos conhecemos minimamente. Não admira estarmos adoecendo tanto.

As pessoas estão cheias de razão! E, se têm tanta razão, facilmente a perdem por motivos banais. Por encontrar alguém que pensa diferente. Perdida a razão, vai-se nossa humanidade. Fica o lado mais bruto, mais selvagem. Aquele da intolerância, dos pré-julgamentos, dos preconceitos. Não aquele lado que agrega, mas o que destrói.

Faço aqui uma prece por um mundo mais imperfeito. Com menos juízes, menos dedos em riste. Com mais tolerância e mais respeito também. Com mais abraços (não dizem que o mundo cabe em um abraço?). Um mundo mais plural, mais reticente. Com menos discursos prontos e mais humanidade. Por um mundo de gente menos cheia de razão. Gente que se permita pensar, refletir, e não vomitar uma opinião. Gente que não tenha uma opinião de imediato, gente que se permita mudar de opinião. Gente mais gente. Que, às vezes, ponha seu rabinho entre as pernas e se recolha a sua insignificância perante esse mundão de meu Deus. Porque, como diria Sócrates, "só sei que nada sei".

quarta-feira, 18 de março de 2015

És tu, Saturno!



Mariana andava inquieta. Introspectiva, pensativa, ansiosa, quase angustiada, diria. Não sabia precisar o que lhe afligia. Por várias noites, chegava a perder o sono: um pensamento qualquer lhe vinha, seguido por outro, mais outro e outros tantos. Quando se dava conta, o sol já vinha nascendo e ela, ali, entregue às suas caraminholas.

Faria aniversario dali a duas semanas. Trinta anos. Como assim, três décadas? Trinta anos, assim, tão de repente? Seria esse o motivo de suas inquietações? Resolveu desabafar com uma amiga. Falou de tudo e nada. Sim, porque vivia um momento em que tudo era intenso: se era para sorrir, o riso vinha alto, estridente, rompantes de alegria extrema; se era para chorar, as lágrimas brotavam do fundo de sua alma, ao melhor estilo dramalhão. Só não compreendia a razão de tanta inconstância.

A amiga, chegada aos assuntos cósmicos, logo deu o diagnóstico: a culpa é de Saturno! Mariana, nem um pouco entendida de astrologia e afins, continuava sem entender suas agitações internas. A amiga explicou: Saturno demora vinte e nove anos para completar uma volta em torno do Sol. Um ano em Saturno equivale a vinte e nove anos terrestres. O retorno de Saturno influencia nossas vidas, sendo o primeiro retorno nossa primeira grande crise. Ela estava vivendo a crise dos trinta, ou, cosmicamente, o primeiro retorno de Saturno.

- Você está pesando o que fez com a sua vida até agora. Estudou o que queria? Trabalha com o que sonhava quando era mais nova? Tem sua casa, seu carro, suas coisas? Casou, tem filhos? Amadureceu? Sim, porque amadurecer é isso. Os trinta anos batem à sua porta e você ainda não teve grandes feitos na vida. Por isso esse sofrimento.

- Obrigada, Marcela, por sua delicadeza em afirmar minha insignificância!

- Não é insignificância, a maioria das pessoas ainda não realizou aos trinta aquilo que imaginava quando era criança. Você lembra como você, aos dez anos de idade, se via aos trinta?

- Sempre achei que, aos trinta, estaria comandando uma empresa, teria dois filhos, um ótimo marido, moraria em uma cobertura na praia e viajaria duas vezes ao ano para a Europa. Hoje estou aqui, a duas semanas dos trinta, e tudo o que tenho é um trabalho que me serve para pagar as contas, dois cachorros, uma quitinete alugada, um namorado que foge de compromisso e o único lugar que consigo ir duas vezes ao ano é ao sítio dos meus pais a trezentos quilômetros daqui!

- Bem-vinda aos trinta!

- Não quero! Quero voltar aos dez! Quero, sei lá, largar tudo (o que não vai ser difícil, já que não tenho nada), pegar uma mochila e viajar o mundo. Quero andar por aí, sem rumo, conhecer novas culturas, novas pessoas, dar um significado para minha vida. Ou, então, largar o emprego e virar artista! Ai, a verdade é que não sei o que quero!

Marcela continuou explicando sobre as voltas de Saturno. Sugeriu que Mariana fizesse seu mapa natal, para saber em que casa ela tinha Saturno. Disse que era provável que fosse na nona casa, pela vontade dela em viajar pelo mundo. Era preciso conhecer as relações de Saturno com outros planetas no seu mapa de nascimento, para compreender melhor a influência do astro em sua vida. Continuou falando por horas e, por fim, dadas as angústias da amiga, sugeriu que ela fizesse mesmo era terapia.

A conversa com a amiga deixou Mariana ainda mais agitada. Resolveu caminhar sozinha pela praia, pois o mar costumava acalmá-la. Saturno, pensava. Como se não bastasse sofrer influências de hormônios, da TPM, até da lua, ainda tinha mais essa de Saturno? Quanto tempo duraria a tal crise dos trinta? Amadurecer realmente não era fácil, pensou.

Colocou sua vida na balança. Começou por aquilo que não estava bom: não tinha o melhor emprego do mundo; ainda não tinha conseguido estudar temas que realmente achava interessantes, como artes, música, cinema e literatura, pois tinha que priorizar aqueles que lhe dessem algum retorno profissional mais imediato (viva o mundo corporativo!); não tinha sua própria casa; seu carro ainda estava sendo pago em suaves (e quase infinitas) prestações; e seu namorado parecia evitar qualquer sinal de compromisso.

Quando uma lágrima teimosa quase rolou por sua face, ela molhou os pés descalços no mar. A água fria em contraste com a areia quente fez-lhe recuperar as energias. Pensou que, talvez, sua vida não estivesse assim tão ruim. Tudo é relativo. Um ano em Saturno dura quase trinta anos na Terra. Em Saturno, ela seria não mais que um bebê! Tudo bem que ainda lhe faltava muito daquilo que um dia projetara. Mas não estava tão longe assim. Além disso, as projeções que fez para sua vida há quinze, vinte anos, não lhe pareciam as melhores naquele momento. Porque a vida não é um plano estático a ser seguido cegamente. Mudanças de planos são necessárias também.


Paradoxalmente, ficou mais tranquila ao constatar o tamanho de suas inquietações naquele momento. Sentiu-se mais viva. Questionar-se, provocar-se, deveria ser sinal de amadurecimento. Sinal de que não estava simplesmente deixando a vida passar, mas assumindo o controle sobre a própria existência. Ainda que esta fosse influenciada por forças que estavam além de sua alçada.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Melhores amigos

Hoje, resolvi fazer algo diferente. Posto aqui não um texto meu, mas um de autoria de meu irmão, que, nos momentos de ócio criativo, também é chegado às letras =D



Eram melhores amigos, daquele tipo que parecem irmãos. Faziam tudo juntos, tinham os mesmos gostos (inclusive para mulheres) e os mesmos sonhos. Amigos de infância, vizinhos de porta, estudavam na mesma turma e, até mesmo na escolinha de futebol, jogavam sempre no mesmo time. Revezavam a braçadeira de capitão e nem mesmo isso era motivo para brigas ou inveja. A relação de amizade era tão forte, eram tão ligados que bastava um cair doente para o outro adoecer, pouco tempo depois.


Durante o tempo colegial, namoraram duas irmãs, gêmeas idênticas. Dividiam até os momentos mais românticos. Tudo ia muito bem, o tempo ia passando e a amizade crescendo cada vez mais. Então, veio a época da faculdade, a escolha do curso superior, os anseios da vida adulta. Com isso, surgiu a primeira diferença: enquanto Jonas queria Engenharia, Vicente flertava com o Direito. Foram dias angustiantes, questionamentos de ambas as partes, até que Jonas resolveu então cursar Direito, somente para agradar ao amigo e continuar a amizade.

Permaneceram colegas de turma e, enquanto Vicente era tido como excelente aluno, totalmente adaptado ao curso, Jonas se via cada vez mais triste, insatisfeito com a escolha e sem entusiasmo para os estudos. Sempre era aprovado nas disciplinas porque Vicente o "ajudava" nas provas. Vicente se via obrigado a isso, pois Jonas estava ali apenas para mantê-los unidos.

Quando Vicente resolveu fazer um estágio fora do país, tudo pareceu prestes a ruir. Jonas se viu pela primeira vez longe do amigo. Foi nesse período, sozinho, sem o amigo querido por perto, que ele conheceu Amanda, uma caloura do curso. Era uma jovem linda, a mais bela mulher que ele já tinha visto. Foi paixão imediata e rapidamente correspondida. Iniciaram um namoro e seu empenho na atividade acadêmica e suas notas deram uma guinada incrível.

Passaram-se meses e, enfim, era chegado o dia do retorno de Vicente. Os amigos estavam ansiosos pela retomada da amizade. Jonas foi buscá-lo no aeroporto, levando consigo sua amada (e estava nervosíssimo, ansioso pela aprovação do amigo). Para piorar a ansiedade, o voo estava atrasado em uma hora e meia, devido às más condições climáticas. Por ironia do destino, Jonas foi ao banheiro no exato momento em que Vicente cruzou a sala de desembarque e deu de cara com Amanda. Encantou-se com aquela desconhecida, praticamente paixão à primeira vista (realmente tinham o mesmo gosto para mulheres). Pensou em flertar, mas, por timidez e por estar procurando o amigo, resolveu desistir. Foi quando Jonas apareceu, deu um beijo na sua amada, cumprimentou efusivamente Vicente e partiu para as apresentações. Amanda, este é Vicente, meu grande amigo, meu melhor amigo, meu irmão. Vicente, esta é Amanda, a mulher mais linda que conheço, a mulher da minha vida, a única dona do meu coração. E Vicente a cumprimentou, num misto de tristeza e constrangimento. Estava tão sem graça que transpareceu o sentimento, a ponto de Jonas achar que o amigo a tinha reprovado.

Seguiram para casa e os minutos dentro do carro foram terríveis. Jonas puxava conversa e Vicente, monossilábico, parecia em outro planeta. Alguns dias se passaram e Jonas, cada vez mais triste, tinha certeza da reprovação do amigo e, talvez por isso, a amizade estava enfraquecida. Resolveu, então, chamar o amigo para uma conversa franca. Perguntou o porque da reprovação de Amanda e disse que se fosse preciso dava por acabado o relacionamento. Vicente o tranquilizou, teceu inúmeros elogios a ela, disse que seria impossível ele encontrar uma mulher melhor. Mas Jonas insistiu, pediu sinceridade, não conseguia entender o que estava acontecendo. Foi quando Vicente confessou. Disse estar perdidamente apaixonado pela mulher do seu melhor amigo e não via outra alternativa senão o distanciamento. Já não era mais digno daquela amizade.

Jonas mais uma vez se via em dúvida. Seguiria o namoro e acabaria com uma amizade tão bonita? Ou romperia com a mulher da sua vida para não afetar a relação entre os dois? Pensou, analisou, ponderou. Durante dias, só fazia isso. Amanda já não entendia o porquê do distanciamento. Então, ele tomou um decisão. Chamou o amigo e a namorada, explicou o ocorrido e deu sua sentença. Rompeu com Amanda, disse que agora ela era livre para iniciar um relacionamento com Vicente, um homem melhor que ele e que poderia fazê-la muito mais feliz. Vicente relutou, reclamou, disse que jamais aceitaria aquela situação e voltou a se sentir indigno de tamanha amizade. Não achava justo, mais uma vez, Jonas se sacrificar por ele. E resolveu se distanciar. Amanda passou a odiar Jonas por tal ato e ele então caiu em profundo desânimo. Tinha perdido de uma só vez o melhor amigo e o seu grande amor.

Meses se passaram, quando Jonas então soube do namoro entre Amanda e Vicente. Era também chegada a festa de formatura. Vicente foi orador da turma, fez um pronunciamento belíssimo, todos foram às lágrimas de tanta emoção. Colaram grau, tiveram um baile de gala e Amanda estava lá, sempre ao lado do novo amado, belíssima, estonteante. Todos invejavam Vicente, todos menos Jonas. Coube a Jonas o prêmio de consolação. Enamorou-se por Fabrícia, colega de turma, bonita, mas não tanto, e rejeitada pelos dois amigos durante os anos de faculdade.

Após 3 anos, Vicente casou-se com Amanda. Jonas foi apenas um convidado comum, sequer foi um dos padrinhos do noivo. Os dois amigos passaram de quase irmãos para meros colegas de classe. Vicente era reconhecido como um advogado de muito prestígio, enquanto Jonas não exercia a profissão. Casou-se com Fabrícia, um casamento mais por comodidade que realmente por amor ou qualquer outro sentimento.

Depois de algum tempo de casado, eis que, certo dia, Jonas, ao chegar de surpresa de uma viagem e adentrar em seu quarto, assusta-se e cai no chão. Ficou tão horrorizado com a cena, que seu coração não aguentou. Ali, literalmente, morrera de espanto. Em seu quarto, em sua cama, estavam sua mulher, Fabrícia, e seu amigo dos velhos tempos, Vicente. Os corpos nus, entrelaçados, os rostos corados e molhados de suor, após momentos tórridos de sexo.


Texto de Hélio Palácio de Andrade

domingo, 8 de março de 2015

Lembranças



Dias atrás surpreendi-me olhando antigas fotos. Como é gostosa sensação de rememorar, relembrar, reviver momentos delicadamente guardados na memória. Mais que comparar o passado com o presente, rindo das mudanças físicas, de comportamentos, de modinhas, é gostosa a saudade que dá daqueles momentos ali registrados. É quase como se as fotos tivessem cheiro e gosto.

Peguei-me pensando no nosso processo de constituição de memórias. Lembrei-me de uma situação da minha infância, quando estudava para uma prova de Português. Um dos assuntos da prova eram as benditas preposições. Após algumas horas de desespero tentando decorar (sim, sou dessa época!) a matéria, resolvi pegar a gramática e sair andando pela casa falando as bonitas em voz alta, de modo ritmado, quase cantado. Lembro que ria muito de como parecia uma boba fazendo aquilo. Mas funcionou. Não decorei as preposições. Aprendi-as. Tenho-as todas na memória até hoje, e isso já tem mais de vinte anos. Tudo bem, não sei em que mudou a minha vida o fato de saber dizer todas as preposições (ajudou muito nas provas, é verdade), mas tirei uma lição daquilo, embora só tenha voltado a pensar no assunto já adulta. Aprendi que a nossa memória é extremamente seletiva. E que, pelo menos para mim, as situações associadas com emoções são as que ficam. Se eu não tivesse feito papel de boba estudando as preposições, talvez as tivesse decorado para a prova e esquecido logo em seguida. Mas o ritmo cantado, os risos e a vergonha em poder ser vista se associaram ao aprendizado da matéria e fixaram-na em minha memória.

Das inúmeras situações que vivenciamos diariamente, provavelmente as que formarão nossas lembranças serão aquelas com alguma carga emocional implicada, aquelas que adquiriram relevância por nos tocar de alguma forma. Uma foto é significativa para mim quando, ao vê-la, quase consigo reviver a cena ali registrada. As fotos de antigamente, da minha época de infância e adolescência, antes das máquinas digitais ou smartphones – em que era preciso comprar o filme (!) e revelar os negativos para ter as fotos –, conseguem me evocar lembranças mais facilmente. Hoje tiramos fotos a toda hora, fazemos selfies e temos a comodidade de fazer tudo pelo celular. Temos muita facilidade, muitos estímulos. Entre tantos estímulos, fica difícil selecionar. E, se não selecionamos o que é significativo, esquecemos mais rapidamente.

Na nossa vida apressada de hoje, temos informação demais, alternativas demais. Ficamos perdidos em meio a tantos estímulos. É muito comum ligarmos o automático e sairmos para mais um dia cheio de compromissos e atividades. Na correria, sobra-nos pouco tempo para uma pausa, para tomar um caminho diferente, para desprogramar o cérebro da rotina. Para formar memórias.

Tenho algumas lembranças de infância que talvez meu filho nunca tenha semelhantes. Lembrança de brincar na rua até tarde, voltando para casa somente após ver os chinelos nas mãos de minha mãe, que eram o sinal para entrar imediatamente. Três fatores meio raros de ser ver, ainda mais juntos, hoje: brincar na rua; à noite; e ser corrigido a palmadas, chineladas ou seja lá o que for. Porque o mundo de hoje é diferente do de minha infância, e tenho de adequar-me a isso com o meu filho. Brincar fora de casa é igual a brincar no play, em um parque ou andar de bicicleta em algum lugar menos perigoso que a rua, sob nossa supervisão. E palmada já não pode, que dirá chinelada hoje em dia! Lembro das viagens de carro que fazíamos. Milhares de quilômetros por estradas esburacadas, sem segurança e com o carro lotado. Meu pai, único motorista nas aventuras de estrada, se aguentando à base de muito café. Creio que essas lembranças contribuíram para o fato de eu amar cheiro de café! Naquela época, lembro de curtir demais o percurso, sem pressa de chegar. Hoje, na maioria das vezes, viajamos de avião. Porque é mais rápido, mais seguro e a maioria das pessoas não quer perder dias de férias na estrada (claro que também não é mais tão caro como antes)! As preocupações com segurança, felizmente, predominam hoje e, tenho certeza que meus pais dariam importância a elas se existissem naquela época.

O fato é que são contextos diferentes. As mudanças acontecem em ritmo acelerado; não dá para comparar o mundo de hoje com o da década de oitenta. Mas, às vezes, me pego pensando em que tipos de lembranças meu filho terá de sua infância. Com tantos estímulos, tanta rapidez, tantos compromissos, tantas imposições.

Certa vez, ao buscá-lo na escola à tardinha, resolvi parar com ele para comermos um cachorro-quente, pois eu estava morta de fome. Dividimos um cachorro-quente e um refrigerante (melhor, eu comi quase tudo, pois ele não come a salsicha). No outro dia, ele pediu para irmos de novo e eu disse que não, pois não se pode comer isso sempre. Entre muitos e muitos por quês, expliquei-lhe que cachorro-quente e refrigerante só pode uma vez ou outra, pois não são muito saudáveis. Ele ignora constantemente minhas explicações e pede para comermos com frequência. Resolvi, por fim, deixar de lado todas as imposições a que estamos submetidos cotidianamente (cachorro-quente, como assim, e a dieta? Refrigerante para criança? Que crime!) e reservar-nos uns dias no mês para calmamente sentarmos junto ao carrinho de cachorro-quente, comermos, conversarmos, rirmos e curtir estarmos um com o outro. Uma quebra na rotina de voltar apressadamente para casa, em meio a um trânsito infernal. Talvez assim, quando ele for mais crescido, ao comer um cachorro-quente, sinta gosto de infância, gosto de momentos agradáveis vividos com sua mãe.

Essas pausas são importantes. Sempre que posso, e quando meu pequeno não está tão cansado que só quer mesmo ir para casa, faço essas pausas com ele. Seja na barraca de cachorro-quente, no parque, no shopping até. Porque o mais importante é desprogramar. Alterar um pouco a rota, fazer algo diferente, estar junto. Curtir o momento. Esquecer o celular, desligar por um instante do mundo, sair do automático. Entregar-se a momentos que virarão doces lembranças. Que deixarão gosto de saudade. Porque passa muito rápido. Quando espantar-me, ele terá crescido. E, dessa época, o que restará serão as lembranças.

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