domingo, 21 de maio de 2017

Romance vintage moderno



Moravam no mesmo condomínio. Em torres diferentes, mas no mesmo condomínio. Ela, no 14º, ele no 16º andar. Se bem observassem, veriam que, da cozinha dela, dava para ver um pouco da sala dele. Se a cortina estivesse aberta. Aliás, quase sempre estava, era meio desligado o Igor. Mas a Letícia nunca tinha visto a sala dele antes, pela janela de sua cozinha. Às vezes até ficava na varanda da sala, olhando para o horizonte, sem mirar nada específico. O apartamento do Igor nunca tinha lhe chamado a atenção.

Eram vizinhos, mas nunca tinham se olhado. Nunca se cruzaram pela piscina do prédio, ou pela academia. Pelo salão de jogos, pelos jardins do condomínio, pela garagem. Nem mesmo um oi apressado nos elevadores, enquanto olhavam as telas de seus smartphones. Ou já haviam se encontrado nessas situações? Nenhum dos dois tinha certeza. Talvez até tivessem se esbarrado, mas nunca se notaram. Nunca! Para o encontro, precisaram de uma ajudinha específica...

Da tecnologia. Sim, eram jovens, modernos, conectados. Foi um aplicativo que proporcionou o encontro. Sem o empurrão tecnológico, talvez continuassem sendo dois vizinhos desconhecidos. A vida moderna é assim, não? São tantas atividades diárias, tanta correria, atribulação, metas de trabalho, de saúde, de vida. Sobra pouco tempo para conhecer os vizinhos. Se acaba o açúcar (opa, açúcar não foi um bom exemplo, olha as dietas restritivas!), quem, hoje em dia, bate na porta do vizinho com uma xícara e alonga o papo, sem pressa, como faziam nossos avós?

Foi ele quem a viu primeiro. Pelo aplicativo, claro. Ficou interessado, era bonita, dizia gostar de grunge, como ele. Morava perto. Muito perto! Eram vizinhos, seria possível? Se tudo estivesse certo, ela morava no seu condomínio. Quanta coincidência! Ele resolveu arriscar e a chamou. Ela viu sem acreditar. Um vizinho? Ficou receosa, parecia arriscado. E se ele fosse um maníaco perseguidor? Decidiu ignorá-lo. Ele persistiu. Ela não deu bola. Ficou assustada com a insistência e deu um tempo no aplicativo.

Ele não se deu por vencido. Eram vizinhos, poderia forjar um encontro casual. E assim o fez. Por várias vezes esperou-a em locais possíveis de encontrá-la ao acaso: na academia, na piscina, no pilotis. Mas esses encontros casuais forçados nunca aconteciam. Quando já estava desistindo, por fim, encontrou-a na portaria, aparentemente esperando uma carona, enquanto ele saía para correr. Ele não acreditou. Ela pareceu reconhecê-lo de sua foto no perfil e disfarçou. Ele não podia perder aquela chance. Chamou-a pelo nome e se apresentou como o Igor, do aplicativo. Ela sorriu, um riso tímido, incrédulo e resistente. Falaram amenidades, ela fingiu desinteresse e disse que sua carona já ia chegar. Ele pediu que ela voltasse a usar o aplicativo, para poderem conversar. Ela disse que não estava mais, que havia cansado daquilo. Ele insistiu. Ela cedeu. Pelo aplicativo, se conheceram, se curtiram e engataram uma relação que já dura quase um ano. Quem disse que a tecnologia não ajuda as coisas? Quem disse que não pode surgir um romance sério por meio de um aplicativo?

Quem disse? Eles diziam, mas a história não era bem assim. Ensaiaram esse enredo e o repetiam à exaustão a quem perguntasse. As pessoas se interessavam por essa versão da história. Dava-lhes um pouco de esperança. Era uma história que dera certo em meio a milhares de encontros de uma noite só, promovidos por aplicativos. Nem tudo estava perdido, enfim. Quando incitados por interlocutores esperançosos e curiosos, eles sempre aumentavam um detalhe aqui, outro ali, dando mais glamour ao seu romance moderno de mentirinha. Porque não foi bem assim.

Viram-se, de verdade, pela primeira vez, foi na fila da padaria. Sim, encontraram-se na fila do pão! Ele a viu, disfarçou o nervosismo e engatou uma conversa. Descobriram-se vizinhos e seguiram caminhando até o condomínio. A rápida caminhada foi agradável e resolveram dar uma chance aos dois. Trocaram telefones, descobriram afinidades além da localização geográfica, estreitaram a convivência e logo os dois apartamentos no mesmo condomínio passaram a ter dimensões mais fluidas, confundindo-se. A cozinha da Letícia passou a observar a sala do Igor e vice-versa. Já não eram mais dois vizinhos desconhecidos.

Depois do segundo mês de relacionamento, a Letícia apresentou o Igor à avó. Era bem moderninha a avó da Letícia. Em nada lembrava aquelas vovós do nosso imaginário, com seus bordados e gatos, a casa cheirando a café e bolo de fubá. Era uma vovó que estava em todas as redes sociais, postava fotos de suas viagens pelo mundo e arrumava uns cobertores de orelha por aí de vez em quando.

- Vocês se conhecem há muito tempo, lá do prédio? – quis saber a avó da Letícia.

- Na verdade, a gente se conheceu na padaria, por acaso. Nunca havíamos nos encontrado pelo condomínio – Letícia respondeu.

A avó olhou meio séria, meio marota e soltou uma risada irônica.

- Vocês são demais. Quase acreditei. Vão me dizer que se conheceram na fila do pão? Isso é tão... 1930! Podem falar a verdade, sei que, no mínimo, se encontraram por algum aplicativo de paquera. Isso, sim, é normal para a época de vocês.

E deu uma piscadela para os dois. Letícia e Igor ficaram sem graça. Confirmaram a versão da avó. Parecia mais verossímil que a real, da padaria. Aperfeiçoaram a versão moderna, do aplicativo, combinaram detalhes e passaram a adotá-la para contar aos outros. E assim faziam desde então. A história real, guardavam só para eles. Quem sabe, um dia, falariam do quão difícil é encontrar a pessoa da sua vida na fila do pão.

 


terça-feira, 15 de novembro de 2016

Bloqueio


Abro, com determinação, o notebook. Hoje ele será meu fiel companheiro. Embarcará comigo nas histórias mais extraordinárias que minha mente for capaz de criar. Sua bateria aquecerá no ritmo efervescente das minhas ideias. Mas, um instante... que ideias?

Encaro a tela em branco à minha frente. Lembro que, quando comecei a escrever minhas primeiras histórias, não encarava uma tela, mas a folha em branco. Recordo a grafia agarrunchada de quem mal aprendera a juntar as letras para formar palavras. E descobri a magia que elas, as palavras, exerciam. Não eram simples junções de letras, mas significantes com poderes mágicos para mim, capazes de me transportar para as mais diversas realidades. Tudo bem que não tinha a menor noção do que era um significante aos sete anos de idade, mas isso não vem ao caso agora.

A tela vazia continua me encarando. Intimidadora. Quase acovardo-me diante dela. Seria melhor abrir um vinho? Hmm... melhor não, ele pode acabar me desviando do meu objetivo desta noite, que é de criar uma história. Faz tempo que não me entrego ao hábito de escrever. Já quase me esqueço da sensação de prazer que sinto ao dar vida às personagens em um conto ou crônica. Qual é mesmo o neurotransmissor que regula a sensação de prazer? Ah, serotonina. Serotonina me fez pensar em chocolate. De repente, me veio um desespero, uma vontade de comer chocolate. Será que ainda tenho aquela barra de 70% na dispensa? Melhor verificar, um chocolate agora é tudo de que preciso para deixar a mente viajar e criar alguma história, qualquer que seja, já nem precisa ser muito boa.

Saio à caça da minha barrinha. Por sorte, ainda restam alguns tabletes dela. Volto para meu notebook e delicio-me com meu chocolate. Minimizo a tela má enquanto como. Tive uma ideia: vou dar uma googlada e ver se encontro algo que me inspire alguma história. Infeliz ideia, isso sim! Que mundo fantástico e traiçoeiro é o da internet. O que era para ser uma simples e rápida pesquisa durou apenas... três infrutíferas horas perdidas. A internet é como um labirinto daqueles em que é quase impossível achar a saída. E aqui estou eu, sem história, sem ideias, sem ânimo, sem inspiração alguma. Também já sem chocolate e, possivelmente, zero serotonina.

Começa a dominar-me um sentimento de desespero. Olho o relógio, já é madrugada. Tenho um duro dia pela frente amanhã. Minha mente cansada começa a reclamar o sono. Mente cansada e improdutiva. Quatro horas em frente ao notebook e nenhuma linha? Santa incompetência!

Estou a ponto de desistir, melhor ir dormir. Antes de entregar totalmente os pontos, começo a pensar em ideias para alguma história. Nem que seja para escrevê-la amanhã. Que tal uma crônica sobre política? Nossa capenga política interna ou o resultado improvável da eleição americana? Rapidamente desisto desse tema, desde quando sou comentarista de política, ainda mais internacional? Melhor algo mais leve, que não acirre ainda mais os ânimos já exaltados por aí. Já sei, uma história sobre chocolate. Esse fascinante produtor de serotonina (rsrs) bem que pode render uma boa história. Ou o vinho, que poderia ter me inspirado a criar nesta noite.

Dou uma longa bocejada, sinto os olhos arderem de sono. Não haverá outro jeito, terei de dormir. Não será hoje que irei me curar da ressaca criativa que me abateu há tempos. O tal do bloqueio é mais forte que imaginava. Onde foi parar a escrita leve, fluida, os dedos que se moviam quase como uma dança pelo teclado?

Lanço uma última encarada ao meu algoz. Algoz é termo masculino, mas é no feminino que ela se mostra. Ela venceu-me mais uma vez. Rendo-me a ela por mais uma noite. Vou dormir derrotada, mas ainda com esperanças. Perdi mais uma batalha, mas a guerra não. O jogo só termina quando acaba, vivo falando. Este jogo só irá terminar quando derrotar minha inimiga cruel: a tela que teima em ficar em branco. 

Poderá gostar também de:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...