sábado, 29 de novembro de 2014

Lady Noemi



- Bom-dia, flores do dia!

Luísa respondeu ao cumprimento sempre efusivo do porteiro do prédio com um sorriso, acompanhado de um singelo “bom-dia”. Noemi virou para o lado, como de costume, ignorando o cumprimento. Ao se afastarem, Luísa lançou o olhar que sempre dirigia à irmã naquelas situações.

- Não começa, Luísa!

- Será que um dia você toma jeito? O que custa ser gentil?

- “Bom-dia, flores do dia”, que coisa mais brega!

- Eu já cansei. Não falo mais nada. Mas ainda espero o dia em que você será curada. Por acaso você lembra o significado do seu nome?

- Claro, você não me deixa esquecer!

- Doçura, suavidade. Que contraste, não? Vou falar pela última vez: você precisa ser mais gentil, mais doce, ou vai acabar afastando as pessoas.

- Bom-dia para você, flor do dia! Espalhe a sua doçura por aí! Eu tenho mais o que fazer!

Noemi saiu antes que Luísa pudesse esboçar uma reação. Aquele diálogo entre as irmãs era quase diário. Apesar de Luísa ser uma espécie de consultora para assuntos diversos e guru espiritual da irmã, as broncas dela não surtiam qualquer efeito em Noemi. As irmãs eram dois opostos: Luísa era delicada, discreta, gentil, do tipo que distribuía sorrisos e irradiava simpatia; Noemi era durona, brigona, do tipo que falava mais do que ouvia e sempre fazia valer sua opinião. Luísa era ligada às artes, meditação, astrologia e tudo que tivesse um quê de metafísico; Noemi tinha um senso prático, era avessa a qualquer tipo de técnica que induzisse ao relaxamento e orgulhava-se de estar a todo tempo "ligada no 220". De alguma forma, as irmãs se complementavam. Yin e Yang, como dizia Luísa.

E Noemi seguiu seu dia normalmente depois de mais uma bronca da irmã: no caminho para o trabalho, xingou vigorosamente um motorista que cortou sua preferência; no elevador, fingiu não ouvir os cumprimentos dos presentes; discutiu com o chefe cinco vezes por pequenas divergências de opiniões; gritou com um colega que não entendeu algo que ela estava falando; e, para fechar o dia, furou os quatro pneus de um carro que ousou trancar-lhe e impedir sua saída. Felizmente, ela carregava na bolsa uns pregos para emergências como aquela. Furiosa, foi embora de táxi e deixou um bilhete nada gentil para o folgado.

Já em casa, a fúria transformou-se em uma dor de cabeça lancinante. Uma dor tão forte, que Noemi tomou remédios e apagou. Um sono profundo, agitado e com muitos sonhos. Em sonho, Noemi se via em uma feroz briga com o motorista folgado (um motorista folgado imaginário, da forma que seu inconsciente resolvera que ele deveria ser - descaradamente lindo). O lindo folgado chamava-a de megera louca. Noemi acordou com um grito perturbador de "megera antipática". Assustada, olhou o relógio e viu que já era manhã. Correu para o chuveiro e tomou um banho demoradamente revigorante. Sentia-se estranha, muito estranha naquela manhã. Como se não fosse mais a Noemi de sempre.

Quando Luísa apareceu no quarto, a cena que ela viu deixou-a atordoada: Noemi abria as janelas com um sorriso bobo e desejava bom-dia ao dia, aos passarinhos, às árvores, às flores e a qualquer outro ser vivo ou não vivo que olhasse pela frente.

- Meu Deus, você foi abduzida! Devolva a minha irmã, seu ET!

- Estou me sentindo meio estranha. Sei lá, abobalhada, feliz. Tive uns sonhos malucos e acordei decidida a ser diferente. A Noemi estilo rolo compressor já era. Agora serei a Lady Noemi.

O queixo de Luísa foi ao chão. Aquela nova irmã, definitivamente, era muito esquisita.

Noemi, agora uma lady, seguiu para mais um dia. Um dia rotineiro, mas completamente diferente. Cumprimentou o porteiro do prédio com um sorriso tão largo que o pobre homem achou que era algum tipo de peça. Foi ao trabalho de ônibus, pois, lembrara, seu carro havia ficado trancado no dia anterior. Mas isso não afetou seu humor extraordinariamente leve. Desejou um bom dia a todas as pessoas com quem cruzou e não reclamou sequer quando, no baú lotado, se viu estrategicamente posicionada com o nariz encostando-se às axilas de um homem enorme ao seu lado. Felizmente é manhã ainda, pensou.

Chegando ao trabalho, foi ver seu carro. O carro que a trancara não estava mais lá. No seu para-brisas, havia um bilhete desaforado, com um número de telefone, cobrando o prejuízo. Noemi tremeu, mas prometeu ligar mais tarde. No caminho para sua sala, distribuiu sorrisos e bons-dias. Abraçou a cada um dos colegas ao chegar. Atendeu a cada telefonema com a voz mais doce que conseguiu. Não discutiu com o chefe. Não reclamou e ainda ofereceu-se para ajudar a todos. Ninguém entendeu o que estava acontecendo. "Deve ser uma forma de TPM às avessas", era o coro que se ouvia.

Ao fim do expediente, resolveu ligar para o número do bilhete. Atendeu uma voz de homem.

- Olá, sou a Noemi. Acho que tivemos um probleminha com nossos carros ontem.

- Probleminha? Sua maluca, você furou todos os meus pneus!

- Na verdade, você me trancou primeiro. De qualquer forma, eu estou profundamente arrependida e gostaria de me desculpar.

O homem estava irritado, mas a nova Noemi, doce, gentil e delicada conseguiu acalmá-lo em menos de um minuto. Marcaram um amigável café no dia seguinte, a fim de desfazerem o mal-entendido.

Quando chegou a casa, Noemi sentia dor nos maxilares, ao que atribuiu ao fato de estar a maior parte do tempo com um sorriso no rosto. Ela não se deu conta, mas, ao fim de um dia, havia distribuído cinquenta e nove bons-dias, quarenta e oito boas-tardes e vinte e dois boas-noites. Além de dezenove abraços e sessenta e dois sorrisos. Isso de ser simpática o tempo todo era muito cansativo.

Luísa analisava a irmã. Perguntava-se quando aquela espécie de encanto iria acabar. Porque, se nem ela, que era o Yin, conseguia ser legal o tempo todo, como Noemi iria suportar? Será que haveria sequelas?

No outro dia, Noemi, ainda a nova doce Noemi, conheceu o folgado do episódio do carro. Estranhamente, seu inconsciente acertara em cheio: ele era descaradamente lindo. Rolou certa tensão entre ambos, algo que alguns chamariam de química. De qualquer forma, o incidente logo estava superado. Marcelo, que trabalhava em um escritório próximo, encantou-se com a meiga Noemi. Marcaram um encontro no sábado, para se conhecerem melhor. Era quarta-feira ainda, e Noemi já estava ansiosa.

O resto da semana seguiu da mesma forma: Noemi comportava-se como uma lady.  Tão doce e gentil que chegava a ser caricato. Noemi parecia um personagem extraído de alguma comédia dantesca. Luísa não acreditava. Que espécie de bruxaria seria aquela? Não gostava da irmã assim. Reclamava tanto da antiga Noemi, mas a queria de volta logo.

No sábado pela manhã, da mesma forma estranha com que se instalou, o encanto se quebrou. Noemi acordou ranzinza, reclamando do tempo nublado lá fora. Luísa jogou-se aos pés da irmã e agradeceu. A Lady Noemi parecia haver ido embora.

- Você está bem, Noemi?

- E por que não haveria de estar, senhorita podicrê?

Era a velha Noemi de sempre. O mesmo mau-humor matinal, a mesma acidez. Noemi não se lembrava de quase nada da semana que havia passado. Quase nada, a não ser do encontro com Marcelo. Recordou-se muito vagamente de Marcelo elogiando seu jeito gentil e delicado. E agora? Ela não era mais assim. Desespero, desespero!

Luísa, sábia conselheira, confortou-a: aja naturalmente, seja você mesma. Se ele tiver de gostar de você, vai gostar. E, na boa, prefiro a velha Noemi rolo compressor a tal da Lady Noemi, que parece mais uma caricatura sua.

A sorte estava lançada. Noemi recobrou a autoconfiança, a postura altiva e, claro, um pouco da dita antipatia habitual. Ninguém é perfeito. Ser legal o tempo todo é chato, pensou. Sentia-se bem.

Saiu decidida para o encontro. Não iria representar. Marcelo era lindo, é verdade, mas, se não fosse para ser, paciência. A fila anda, como dizem. Ao passar pela portaria, olhou o porteiro. Ele esboçou o cumprimento de sempre, mas Noemi olhou-o, a princípio, indiferente. Ele calou-se, confuso. Noemi, então, disse: boa-noite, seu Valdir, como vai o senhor?

Parece que havia ficado algo da nova Noemi na antiga Noemi, ou da antiga na nova, como queiram. Nem lady, nem rolo compressor. Simplesmente Noemi.

Os vestidos de Lulu

Início da noite de sábado. Lulu pega do armário um vestido e começa a arrumar-se. Casamento de sua prima Flávia. Enquanto ela tira o vestido do cabide, sua mente vagueia. Léo vai estar lá. Ela tem de estar linda. Poderosa. Deslumbrante. De um jeito que ele, ao vê-la, sinta dor e remorso por tudo o que fez.

A cena aparece em flashes para ela: Léo e Tatiana, os corpos nus, as faces coradas de cansaço e vergonha, os olhares ora suplicantes, ora zombeteiros. Ali acabara o noivado e a suposta amizade de anos. Ninguém merece uma amiga traíra. Mas os dois se mereciam, duas cobras. Flávia explicou, com todo o tato, que chamou o casal porque ela era vizinha de Léo, eles cresceram juntos e tal. Lulu não se fez de rogada: sem problemas, isso já está superado. Não estava, mas ela não iria admitir e perder a chance de sambar na cara dos dois. De desfilar com Felipe, seu novo namorado e quase um deus grego (tudo bem, não era exatamente um deus grego, mas era mais bonito que Léo) a tiracolo, transpirando felicidade.

Lulu põe o vestido. Já tem maquiagem e cabelos prontos e, só assim, já estava fantástica. Mas a roupa seria o grand finale. Ela rodopia e se olha no espelho. Tcharam.


- Nãããooo - ela grita, um som abafado que ecoa pelas paredes do apartamento. Felipe, que aguardava na sala, ouve o grito e pergunta se está tudo bem.

- Está tudo bem, sim, amor. Estou me arrumando. Bati o dedão do pé, mas não foi nada. Mais um pouquinho e estou pronta.

Lulu se olha novamente. Não era possível. Ela só podia ter engordado. O vestido, até dias atrás perfeito, resolveu ficar horrível logo naquela noite. Ela não podia aparecer para Léo e Tatiana com os culotes marcando daquele jeito. Pegou um outro vestido e experimentou. Aquele haveria de ficar bom. Um pretinho nada básico que a deixava fabulosa.

- Não é possível! - Sufocou o grito, para Felipe não pensar que ela enlouquecera - Só pode ter sido o brigadeiro que devorei ontem. Como pode estar apertado desse tanto?

Pega mais um vestido, agora um vermelho divino, usado apenas uma vez e que ficara um arraso. Isso, pensou, arrasaria no papel de "dama de vermelho". Novamente gritos abafados ao ver sua imagem no espelho.

- Mas o que é isso? Só pode ser bruxaria daquela serpente da Tatiana! Nada me serve!


Lulu não desiste e recorre a mais um vestido, um azul turquesa. Repete-se a mesma cena, os mesmos gritinhos sufocados, o praguejar contra Léo e Tatiana. Pega um cor de vinho, um dourado, um prateado, um salmão, um fúcsia, um estampado, um coral, um violeta, outro estampado, um branco - não, branco não pode, é a cor da noiva. Ou não é mais? O que diz a etiqueta dos casamentos sobre isso? Ah, dane-se, branco não!

- Não tenho roupa! - Dessa vez, ela não abafou o grito.

Felipe corre para o quarto e a encontra debruçada sobre os vários vestidos na cama. Se ele não aparecesse naquela hora, ela provavelmente teria dado início ao pranto (pelo menos, sua maquiagem estava a salvo).

- O que aconteceu? E todos esses vestidos? Você não disse que logo estaria pronta? - Felipe já começava a derreter dentro da roupa de pinguim.

Tudo rende histórias!

Sempre fui, digamos, meio imaginativa e descobri desde cedo que da minha mente fértil poderiam surgir algumas historinhas bem legais. Da paixão pelos livros surgiu certa habilidade com a escrita e, aqui, resolvi reunir algumas crônicas baseadas no nosso dia a dia: aquela conversa ouvida "sem querer" no elevador (como se isso fosse possível) ou em uma fila qualquer (é incrível como há fila para tudo), uma situação vivida na realidade ou em sonho (sim, sonhos rendem boas histórias), aquele amigo hilário ou aquele colega de trabalho especial, o ônibus lotado da volta para casa... Tudo vira história. Viver rende boas histórias!

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