sexta-feira, 17 de julho de 2015

Elevadores, fobias e saquinhos de vômito (Prada!)


Claustrofobia. Ela aprendeu o que significava essa palavra estranha quando era criança. Quando, aos nove anos, ficou presa pela primeira vez no elevador do prédio em que morava. Estava sozinha, o que elevou o pavor à enésima potência. Ao todo, ficou cerca de cinquenta e cinco segundos trancada naquela espécie de caixa do pânico. A combinação de: 1) o porteiro ter sido muito eficiente; 2) o elevador ter parado no primeiro andar (bem próximo à portaria) e; 3) claro, ela quase ter colocado o edifício abaixo por causa dos gritos histéricos desesperados interromperam rapidamente seus instantes de agonia. Mas, não importava, o estrago já estava feito: o medo de lugares fechados – no seu caso, especificamente de elevadores – iria acompanhar-lhe dali em diante, até o último de seus dias.

Com medo de novas ocorrências como essa, ela desenvolveu suas defesas, na verdade, alguns pensamentos obsessivos e comportamentos compulsivos. Mas, quem não tinha um pouco dessas coisas de vez em quando? Que atire a primeira pedra quem é “normal” o tempo inteiro.

Ela começou contando quando entrava em elevadores, para aferir o tempo exato que se demorava dentro deles. Depois, descobriu-se boa com números e suas obsessões “evoluíram” à medida que ela crescia. Iniciou com operações simples: passou a somar, subtrair, multiplicar e dividir os algarismos que indicavam os andares nos elevadores. Quanto mais rápido fizesse os cálculos mentais, menor seria a probabilidade de ficar presa novamente. Parece que aquilo funcionava, pois jamais se repetiam episódios como aquele dos seus nove anos. Quando as operações básicas haviam se tornado simples demais, ela passou para as análises combinatórias: se pegava fazendo arranjos e combinações entre os algarismos durante suas “viagens elevatórias”. Não importa a ordem, combinação; se a ordem importa, arranjo, lembrava ela, e rapidamente calculava as possibilidades. A fobia adquirida na infância, pelo menos, tornou-a expert em matemática.

Adquiriu também um comportamento emitido todas as vezes que entrava em um elevador: rapidamente apertava o botão do ventilador, desligando-o. Não conseguia explicar a lógica daquilo, simplesmente o fazia e o alívio era imediato. Não importava se estivesse sozinha ou com o elevador lotado, ela simplesmente desligava o ventilador e ficava alheia aos protestos que porventura se seguiam.

Aquilo vinha surtindo efeito até então. Nunca mais havia ocorrido um novo episódio. Nunca mais, até aquela noite. A noite depois de um dia tenso de trabalho, quando tudo o que ela queria era se teletransportar para sua jacuzzi com vista panorâmica para o lago. Entrou apressada e distraída no cubículo e, como de costume, apertou o botão do ventilador. Mas, em vez do ventilador, o botão que alcançou foi o da luz e, imediatamente, tudo ficou escuro. As três pessoas que estavam lá dentro se assustaram com o apagar das luzes, mas, se assustaram ainda mais com os gritos dela. Até o momento em que compreendeu que fora ela quem havia, erroneamente, apagado as luzes, já estava ficando rouca de tanto berrar. Rapidamente acendeu as luzes e tentou alcançar o botão do ventilador.

Nesse momento, porém, o elevador deu um tranco e parou. As luzes se apagaram – agora não fora culpa dela – e se acenderam de novo. O elevador estava parado, sabia-se lá em que andar. Eles estavam presos. A cena dos seus nove anos voltou inteira em sua mente. Ela era novamente a garotinha assustada, bradando gritos histéricos e palavras desconexas.

- Foi minha culpa! Tudo porque não desliguei o ventilador! – ela falava com a voz sôfrega.

- Calma, tudo logo vai se resolver. Vou chamar o resgate. – placidamente falou o homem de meia-idade. Como os homens podem ser tão frios em situações de desespero?

Ele apertou o botão da campainha, mas nada aconteceu. Apertou novamente e... nenhum sinal. Ela viu o sangue ir embora de seus vasos quando percebeu que não conseguiriam chamar o socorro. As pernas cambalearam e logo não foram mais capazes de suportar o peso de seu corpo (só para deixar claro: o peso do seu corpo estava muito bem distribuído, com bastante massa magra, às custas de muito suor e alguns sacrifícios – somente alguns, porque ela tinha uma boa genética e jamais conseguiria abrir mão do chocolate).

Deixou-se pender ao chão e, com a cabeça atordoada, pôs-se a fazer cálculos mentais, como forma de aliviar o sofrimento. Quais as probabilidades de ela sair daquela caixa do pânico ilesa? Revirou a bolsa, procurando algo. Como não encontrava, virou-a no chão, deixando rolar alguns de seus pertences: as chaves com pelúcia de oncinha, a nécessaire inseparável, uma escova de cabelo magnetizada – que ela usou para dar três escovadas nas madeixas –, um iphone de última geração, uma garrafa de água Perrier. Não era isso que queria, mas água nessas situações é sempre bom – se for francesa, melhor ainda. Continuou revirando a bolsa e, enfim, encontrou: uma bolsinha Prada, com vários saquinhos para vômitos. Sempre os carregava consigo, para emergências como aquela. Tirou um dos saquinhos bonitinhos – sério que foram feitos para o fim a que se destinavam? – e começou a soprar dentro dele.

As três pessoas no elevador olhavam-na com um misto de preocupação, curiosidade e estupefação. A situação era dramática, mas também tragicômica. Ela não simplesmente passava mal, mas tinha todo um estilo para enfrentar seu pavor. Quando ela passou a fazer suas análises combinatórias não mais a nível mental, mas em um som débil, porém claramente audível, a surpresa foi geral. De onde saíra aquela criatura?

A senhorinha, que enfrentava a situação da forma mais serena possível, sacou de um truque para tentar fazê-la se sentir melhor: discou um número no celular e fingiu que falava com alguém. Repetiu as palavras do interlocutor de mentirinha, para acalmá-la: ele (quem quer que fosse ele) já estava a caminho, com as chaves do elevador. Era questão de segundos. Ela deve ter acreditado, pois a cor das faces começava a voltar. A respiração adquiriu um ritmo mais suave.

O rapaz com fones de ouvido, que parecia mais alheio a toda a cena, foi quem assumiu as honras de herói da noite: forçou as portas, uma, duas, três vezes, até que elas cederam e abriram alguns centímetros, o suficiente para fazê-la passar para fora. Os outros saíram em seguida.

Depois disso, ela não lembra de mais nada. Os outros contaram que o tempo total dentro do elevador foi de exatos três minutos. Ela achou que fossem três décadas. Ela não lembra como chegou a casa, pensou realmente na possibilidade de teletransporte, embora a opção mais aceitável – e confirmada depois – fosse a de que o homem de meia-idade, preocupado que ficou, levou-a em segurança até sua singela residência. Dizem que vários romances surgem após situações desesperadoras. Será possível?

Ela não sabia e nem queria pensar nisso, por ora. A única providência que tomou, no dia seguinte, e nos próximos também, foi a de evitar os elevadores. Adotou as escadas. Exercício é sempre bom! Só não de salto, aí já é sacrificante demais. Então, ela, cuidadosamente, tirava seus saltos Jimmy Choo, guardava-os em saquinhos imaculados, calçava um Loubotin baixinho e seguia. Sem medos. Sem pensamentos negativos. E com muito estilo.


sexta-feira, 19 de junho de 2015

Anedonia: um conto pós-moderno


Quarta-feira à noite. Ele serviu-se da costumeira taça de vinho diária. Fazia bem à saúde, já estava provado. Lembrou-se de alguns anos atrás, quando brindava com a ex-esposa com o mesmo vinho que degustava agora. Assim que casaram, tinham o hábito de brindar a tudo: à vida, à saúde, à paixão, ao amor, à sexta-feira, à quarta-feira e até ao fato de terem um bom vinho para beberem. E, nessa noite, lá estava ele: sem paixão, sem amor, sem companhia, solitário. Só lhe restara o vinho. Pensou que podia brindar a ele, o vinho, companheiro de sempre. Mas lembrou-se de que não tinha com quem brindar. Então continuou ali, simplesmente bebericando sua taça. Tentando, de alguma forma, entregar-se aos prazeres etílicos.

Como o estado ébrio demorou a aparecer, permitiu-se mais uma taça. E mais outra. E outra. A garrafa inteira. Algumas taças de vinho deixavam-no agitado. Toda a garrafa deixava-o deprimido. Percebeu-se evocando memórias há muito esquecidas. Se tivesse companhia agora, um ombro qualquer, não seria de espantar que o alugasse para derramar seu pranto. Entorpecido, percebeu algumas lágrimas rolarem. Em seguida, soluços. Estava tão bêbado que chorava?

Olhando para sua taça de vinho, viu-a. Linda, adorável, inteligente, sensual. A mulher da sua vida. Aquela que lhe arrebatara o coração. A quem jurou amar na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte os separasse. A morte não os separou. Quem se encarregou disso foi a própria vida. As agendas incompatíveis, o dia a dia sempre corrido, a rotina. Era perfeito quando estavam apaixonados. Quando a paixão foi embora, cerca de um ano depois, não cedeu lugar ao amor. Não havia cumplicidade suficiente para manterem juntas as escovas de dente nem dividirem os sonhos na mesma cama. As diferenças começaram a gritar. Já não havia um ponto comum que mantivesse aquelas duas individualidades em harmonia. Para quê insistir no que estava errado? Chegaram à mesma conclusão juntos. O amor jurado eterno se desfez após um ano e dois meses de união.

Fazia quatro anos que haviam se separado. A fase de raiva explícita e resquícios de sentimentos velados havia sido superada. Falar ou pensar nela já não lhe revirava o estômago nem provocava náuseas. Aliás, até aquela quarta-feira, quando, sob o efeito do vinho, sentiu algo a que ele podia chamar de saudade, a ex-mulher não lhe provocava qualquer efeito: nem raiva, nem saudade. Nada. Pensou estar imune a ela. Pensou estar imune à vida, na verdade. Já não sentia nada. Nem raiva, nem amor, nem dor, nem prazer.

Prazer. Essa era uma palavra quase ausente do seu atual repertório. Sensação há muito inexplorada. O mais contraditório era que ele estava constantemente em busca do prazer. Levava a sério o tal do carpe diem, pois, como tudo que lhe acontecia era tão rápido, tinha o amanhã como incerto demais para fazer planos a longo prazo. Prazer era algo que devia ser buscado a todo custo, comprado até. No entanto, era dificilmente encontrado. E, quando pensava experimentar a sensação, ela era tão fugaz que logo a perdia.

Assim foi com o carro de luxo há muito tempo desejado. Colocou-o no patamar de objeto de desejo, do tipo que só lhe era permitido sonhar e admirar de longe. Poder possuir, um dia, o carro dos sonhos era, para ele, uma meta, um plano que deveria pôr em prática para provar ao mundo que, sim, ele era capaz. O carrão que sonhava ter um dia era essencialmente um símbolo, um significante que o inseria na categoria das pessoas diferenciadas. Trabalhou arduamente para isso. Abriu mão de muitas coisas. Mas, quando pode, enfim, comprá-lo, comportou-se como uma criança com um brinquedo novo: ficou excitado por pouquíssimo tempo e logo o brinquedinho, no caso, o carrão, perdeu a graça.

Na busca incessante por prazer, acumulou muitos bens materiais. Sentir prazer era algo cada vez mais raro e caro. Da mesma forma, colecionava títulos. Fora lançado a um mundo competitivo demais. Precisava destacar-se dos outros. Protegia-se atrás dos títulos. Eram uma espécie de filtro que mostrava ao mundo apenas uma parte sua, a mais brilhante. Davam-lhe ares de importância. Ele gostava disso.

O problema era que, à medida em que aumentavam suas conquistas, mais exigente ficava seu limiar do prazer. Era como se vivesse sem rumo, em uma busca eterna por algo que ele nem sabia do que se tratar. Preenchia os buracos de sua alma com vinhos caros, mulheres, carrões.

Moldava-se a uma vida de aparências, às custas do sacrifício de sua essência. Vivia no piloto automático. Há tempos não acessava suas áreas mais profundas, estava sempre na superfície. O vinho da quarta-feira fez isso por ele.

Começou lembrando dela, Manuela. A mulher a quem amara e de quem pensara haver esquecido.  Tentou encontrar o ponto exato em que o relacionamento chegara ao fim. Não encontrou. Não houve uma grande crise. Houve mais um desgaste natural da relação. Pequenas coisas do dia a dia que se avolumaram. Palavras não ditas, mágoas não expostas, ressentimentos mútuos. Conviver é complicado. Eles não estavam prontos. Não naquela época. Talvez nem agora.

Entorpecido, travava diálogos mentais. Não sabia se estava completamente bêbado ou completamente lúcido. A ressaca seria infernal. Pelo vinho ou pela moral. Mas a sensação inebriante era boa. Ele, que andava anestesiado, pegou-se tomado de saudade. Saudade de Manuela. Saudade de ter com quem brindar. Saudade de amar e ser amado. Saudade de sentir saudade. De sentir prazer. De sentir qualquer coisa intensamente. Não, não estava imune a Manuela. Não estava imune à vida. E, sim, isso era bom.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Malu, a estressada



Malu sempre foi estressada. Desde quando era Maluzinha, sua mente ansiosa estava à frente, impedindo-a de estar de fato onde devia no momento. Nas brincadeiras, entregava- se durante os dois primeiros minutos, em média. Depois, começava a confabular, encontrava até chifre em cabeça de cavalo e estragava a diversão. Logo acusava o amigo que queria trapacear, o irmão que não sabia jogar, lembrava da mãe que iria brigar porque ela estava se demorando além do previsto. Cresceu com a feroz ansiedade como companheira e o estresse era característica bem lembrada por todos de seu convívio.

Quando estava mais entendida, passou a identificar gatilhos para seus estresses e algumas válvulas que lhe faziam fugir das crises. O fora do namorado pedia chocolate. Aos montes, sem pena. Uma descarga de dopamina para esquecer o galinha safado que não merecia sequer habitar o mesmo planeta que ela. Conflitos familiares eram amenizados com roupas novinhas, compradas somente por impulso e pela sensação reconfortante de passar o cartão na maquininha e carregar montes de sacolas. E, claro, para crises de grau altíssimo, sempre havia eles... os sapatos. Pares e pares, amontoados no armário. Às vezes, quando batia uma leve culpa, ela lembrava que não eram apenas sapatos. Eram recompensas, alívios para todo o sofrimento por que já passara um dia.

Assim, ela vivia ciclos: um gatilho qualquer, estresse e ansiedade, um mecanismo para combatê-los, alívio momentâneo e, não tardava, tudo novamente. Cíclicas eram suas crises, assim como as "terapias alternativas super eficientes" (nos termos dela), que descobria para enfrentá-las.

Começou com aulas de dança. Alguém disse que dançar era um ansiolítico natural, sem contraindicações, de efeito terapêutico imediato, além de favorecer o convívio social. Matriculou-se em um curso de balé. Nunca havia feito balé quando menina, mas, na companhia de uma amiga, resolveu aventurar-se nos pliés e jetés da dança. A empolgação durou três semanas, até ela torcer o tornozelo em um passo mais arriscado para sua categoria iniciante tardia, o que a fez pendurar, para sempre, as sapatilhas.

Resolveu mudar radicalmente e, dos collants e sainhas, passou às pesadas luvas. O boxe era a terapia da vez. Parecia um excelente meio de descarregar as tensões acumuladas durante o dia. Saiu do trabalho com seu par de luvas recém-comprado, seus shorts especiais e foi à primeira aula. "Dar porrada" devia ser mesmo legal, pensou. Só não tinha ideia do quanto o esporte iria lhe exigir. Depois de derramar litros de suor no primeiro treino, começou a sentir torpor, a visão turva e o ar parecia faltar-lhe. Não lembra o momento em que quase foi ao chão. Ela só recorda que, ao despertar, rodeada de alunos, tinha sua luva apoiando a cabeça, cuidadosamente colocada pelo seu instrutor após o susto. Saiu da sua primeira aula morta de vergonha e nunca mais conseguiu retornar.

Depois vieram as aulas de yoga. Que ela, também, não conseguiu levar adiante. Muito zen, dizia a quem perguntava. Pilates, musculação, dança do ventre. Aulas de inglês, francês, espanhol, alemão. Aventurava-se em todas, mas não chegava a concluir nenhuma língua. Resolveu, então, que precisava era de adrenalina. Esportes radicais. Slackline, canoagem, bodyboarding, escalada, montanhismo. Fez de tudo. Perdeu muito do medo que tinha, mas a ansiedade não resolvia deixar-lhe.

Foi para o campo das artes. Desenho, aulas de canto, violão, saxofone. Descobriu talentos que sequer imaginou ter. Já podia tentar uma segunda profissão, pensava. Mas dormir tranquila em sua cama fofa que era bom, nada!

Então, descobriu algo que parecia ser a cura para sua ansiedade. Tudo bem que foi levada a isso por modinha, mas era tão simples e lúdico, que não sabia como nunca havia tentado antes. Livros de colorir. Tinha alguns livrinhos de atividades de seus filhos em casa, mas nunca se interessou de fato por eles. Até que, passeando por uma livraria, avistou os tais livrinhos para adultos. Foi meio que hipnotizada por eles. Resolveu levar dois, além de uma dúzia de lápis com efeitos especiais. Era fan-tás-ti-co!! Depois de uns dias, resolveu comprar mais livros e também aumentar sua coleção de lapizinhos fofos. O efeito terapêutico estava comprovado. Finalmente, descobrira algo que funcionava para ela.

Até que uma amiga, também recém-adepta da atividade, incluiu-a em um grupo no WhatsApp. Nossa, já existia até grupo de adoradoras dos livrinhos mágicos! Então, a terapia deixou de ser terapia. Passou a ter efeito contrário. Eram disputas diárias de quem tinha mais lápis, quem fazia os efeitos mais bonitos. Sempre havia aquela com a maleta mais cara e mais cheia dos melhores lápis. Aquela que dava às gravuras um colorido profissional. A que postava fotos tão perfeitas, que levantava suspeitas sobre sua autenticidade. A que mais parecia incorporar um pintor expressionista. Malu não se sentia à altura das amigas/rivais. Céus, aquilo ia deixá-la louca!

Até que ela encontrou o meio de impressionar. Já não se tratava de desestressar, mas de sentir-se pertinente e adequada, como um adolescente à procura do seu grupo. Precisava mostrar àquelas mulheres que, sim, ela era boa também. Até melhor que elas. Tirou a foto e postou. Logo começaram a soar os bipes das mensagens felicitando-a, a inveja em forma de cumprimentos. Ela se sentiu vitoriosa, o gosto agridoce da soberba deliciava-se. Ria-se, orgulhosa e trapaceira, admirando o livro aberto na gravura colorida, de forma escondida, pela filha de sete anos. A única que, naquela casa, no momento, experimentava de verdade o poder lúdico e curativo daquelas páginas.

domingo, 10 de maio de 2015

O maior amor do mundo


Texto especial para o Dia das Mães. Parabéns a todas as mães!



A gente sempre ouve por aí que amor de mãe é incondicional. Eu não tinha muita noção do que era isso, repetido aos ventos como um mantra. Pelo menos até ser mãe.

Antes de ser mãe, tudo que ouvia a respeito da maternidade parecia meio exagerado. Hoje sei que não é. Nossas mães costumavam dizer: "quando você for mãe, vai entender". Mãe, você estava certa: hoje, eu entendo. Antes de me tornar mãe, tinha uma ligeira noção disso tudo. Sentir de verdade, só passei a sentir quando fui mãe.

Se alguém me dissesse, há alguns anos, que a minha vida iria se transformar completamente, eu poderia até imaginar: horas de sono perdidas, menos tempo para mim mesma, preocupações com uma vida sob minha responsabilidade etc. Não imaginava era o tamanho e profundidade das mudanças que a maternidade iria operar em minha vida. Posso dizer, sem medo de parecer meio brega, que ser mãe é experimentar o maior amor do mundo!

E, quando a gente é tocada por esse amor, a gente se transforma. A lagarta vira borboleta. A vida ganha um colorido especial. Quando estamos no papel de mãe, é como se apresentássemos ao mundo nosso melhor lado. Não que a maternidade seja um mundo cor-de-rosa, intocado, perfeito. Tudo isso a gente descobre, no dia a dia, que não é. Porque, antes de sermos mães, somos humanas. Sofremos, erramos, aprendemos. Compreendemos melhor os nossos pais. Perdoamos. Tornamo-nos mais empatas. Passamos a entender melhor o tal do "amor incondicional".

Descobrimos o amor pelos nossos filhos (ah, esse é fácil!). Mas, além disso, descobrimos o amor por cada filho e por cada mãe. Sorrimos com os filhos de outras mães. Choramos por esses filhos e, mais ainda, choramos por essas mães. Porque a dor de uma mãe não é dela, apenas. É de todas. É como se todas as mães estivessem unidas por essa espécie de sentimento mágico.

Nossas prioridades mudam depois que a gente é mãe. Porque nossa vida e nosso tempo já não  são só nossos. A gente descobre o quanto a infância de nossos filhos passa rápido. Que nada se compara a acompanhar os primeiros sorrisos, os balbucios, os primeiros passinhos, as descobertas. Que sentar juntos para fazer dever de casa é um aprendizado maravilhoso. Para eles e, especialmente, para nós. A gente dá valor a cada beijo de despedida na escola, pois logo eles irão crescer e terão vergonha disso.

A gente se sente importante de verdade. Porque, para nossos filhos, somos referência. O que dizemos a nossas crianças é como uma verdade absoluta. Por isso, aprendemos a nos policiar mais. O que dizemos e fazemos a nossos filhos será determinante para eles.

Aprendemos a administrar melhor nossos anseios e culpas. Sentimo-nos mais leves quando tiramos dos ombros o peso da culpa que o mundo aprendeu a jogar sobre as mães. Descobrimos, pela experiência, que não precisamos ser heroínas nem polivalentes, mas acabamos sendo um pouco disso mesmo assim.

Fazemos nossas preces em silêncio. Pedimos mais tempo nesta terra para passar com nossos filhos. E, mais que isso, suplicamos mesquinhamente que jamais um filho parta antes de nós. Porque, apesar de sabermos que eles não são nossos, apesar de tê-los carregado no ventre, nos braços e para sempre no coração, queremos ter o aconchego deles por perto e, não, não queremos experimentar a dor de ver um filho partir.

Passamos a apreciar as horas juntos, os sorrisos e silêncios compartilhados. Porque podemos passar horas entretidos, cada um com suas atividades, mas sabemos-nos juntos. Aprendemos a conviver com as diversas emoções (muitas vezes diametralmente opostas) que a maternidade proporciona. Encontramos paz na agitação, disposição mesmo quando o corpo se sente esgotado e força onde sequer imaginávamos existir.

Quando a gente se torna mãe, a gente experimenta um pouco do maior amor do mundo. E isso nos torna mais especiais. Hoje entendo quando dizem que mãe é meio sagrada. Não porque deixamos de ser humanas, mas sim porque provamos do amor que, com certeza, vem de Deus.

domingo, 19 de abril de 2015

Diário de um zumbi tecnológico



6:30 da manhã. O alarme toca. Demoro a identificar de onde vem o som, que permanece vibrando cada vez mais alto. Após alguns longos segundos, finalmente consigo encontrar o celular e desligar o alarme. Esfrego demoradamente os olhos. Ainda meio dormindo, pego o telefone. Dou uma rápida olhada nas novas mensagens que chegaram durante a madrugada (sempre tem gente com relógios biológicos diferentes). Nada muito importante, mas aquilo, aos poucos, me desperta. Checo apressadamente as notificações das redes sociais. Meus olhos já se acostumam com a luz do aparelho e, após alguns minutos, sinto-me pronto a levantar e encarar mais um dia.

Quase esqueço do hábito de todas as manhãs: dar um bom-dia para a assistente do telefone. Nas últimas semanas, temos batido longos papos. Confesso que aquela voz tem me fascinado tanto que quase cheguei a pedi-la em casamento! Depois de receber o habitual bom-dia e trocar umas duas ou três palavras com a "moça", enfim pulo da cama.

Tomo uma ducha apressada. O café da manhã é engolido enquanto acompanho as notícias no tablet. Resolvo postar algo animado no Facebook, para quebrar um pouco o mau humor matinal. Dois minutos depois, começam a aparecer as curtidas. Parece que o dia começa, então.

Pego a mochila e saio para tomar o costumeiro ônibus. Não tive a sorte de conseguir um assento, mas, felizmente, o ônibus não ia tão lotado. Conecto meus fones de ouvido, ponho para tocar uma música com uma batida maneira e desligo-me daquele ambiente. São trinta minutos até o trabalho. É preciso tornar as coisas mais fáceis.

Após dezoito minutos de pé, distraidamente avisto um lugar vago. Aproximo-me para sentar. Mal noto as pessoas ao redor. Sem querer, tropeço no Allstar vermelho da garota sentada ao lado. Sussurro um pedido de desculpas meio sem jeito e me acomodo na poltrona. Toca uma de minhas músicas favoritas na playlist. Fecho os olhos, viajando na melodia. Não sei quanto tempo fiquei de olhos fechados, mas, quando os abro, noto que a garota do Allstar estava com os olhos fixos em mim. Ela desvia o olhar quando percebe que a flagrei. Olho pela janela por um instante. Vejo pessoas apressadas por todos os lados. Volto a olhar para dentro do ônibus e lá está a garota, novamente me encarando. Seria um flerte? Meus últimos romances têm ocorrido pelo Tinder. Ando desabituado em iniciar relacionamentos à moda antiga, sem antes selecionar um perfil supostamente interessante. Os olhares da garota me deixam meio sem saber o que fazer e, na falta de um repertório apropriado para a situação, agarro-me ao melhor dos amuletos: meu celular. Fixo meus olhos na tela do aparelho e viro-me um pouco de lado, evitando encontrar os olhares da garota.

Meu ponto chega, afinal. Peço licença para a menina e desço apressadamente. Quando o sinal abre para mim, atravesso a faixa de pedestres de forma distraída. Na verdade, cruzo a faixa checando as últimas notificações que chegaram no celular. Esbarro sem querer com um homem que, igualmente, tem os olhos na tela de seu aparelho. Ele mal me olha, mas solto um pedido de desculpas mesmo assim.

Avisto a entrada do escritório. Mais um dia. Passo pelas portas enormes e vou direto ao elevador. Levanto o olhar à procura de algum conhecido, mas não avisto ninguém. Dou um bom-dia discreto às pessoas ali presentes, mas ninguém, exceto a senhorinha ao meu lado, parece ouvir. Uns dois ou três têm fones no ouvido, outros estão distraídos ao celular. A senhora sorri em resposta e eu aperto o botão do meu andar.

No trabalho, o dia segue normalmente: alguns pepinos para resolver e, depois, um pouco de tranquilidade. Quando a hora do almoço se aproxima, marco um almoço com uns colegas para logo mais. Mando o convite para o grupo do escritório que temos no WhatsApp e rapidamente há respostas. Isso movimenta um pouco o resto da manhã, que já ficava tediosa. Apesar de estarmos lado a lado na sala, mantemos nossa conversa por meio do aplicativo.

No almoço, vamos a um restaurante próximo. O lugar estava bem movimentado. Comemos de forma apressada, falamos algumas bobagens e também passamos algum tempo checando nossos telefones. Depois retornamos ao escritório. O resto da tarde transcorre calma. Na verdade, calma até demais. Para espantar o marasmo, resolvo atualizar o Instagram. Logo as fotos do nosso almoço, apesar de nada extraordinário, estavam na rede. Pronto! Volto aos assuntos de trabalho, terminando de atualizar umas planilhas e, enfim, é chegada a hora de ir embora.

Corro para tentar pegar o ônibus não muito cheio. Por sorte, quando chego ao ponto, ele já vem passando. Não há assentos vagos, então acomodo-me de pé ao fundo, de onde teria uma visão geral do ônibus, para o caso de vagar algum lugar. Levo a mão ao bolso, procurando os fones de ouvido. Não os encontro de imediato, devem ter escorregado mais para o fundo. Procuro-os novamente, e nada. Nem os fones e nem o celular! Como posso ter deixado o celular no escritório? Nem posso mais descer, pois já estou longe do ponto. Lembro que, depois de atualizar o Instagram, joguei o celular na gaveta do escaninho. Na hora de sair, tranquei as gavetas e fui embora. As chaves, pelo menos, estavam no bolso. Ninguém iria encontrar o celular. No dia seguinte, eu o teria de volta. Mas, como iria ficar até o outro dia longe do aparelho? E a viagem de volta para casa, como seria, sem ouvir a salvadora playlist?

Fecho os olhos e suspiro, com raiva de mim mesmo. Quando os abro, avisto-a novamente. Ela, a menina do Allstar. A garota dos olhos profundos que insistia em me encarar pela manhã. Ela estava de pé, bem próxima a mim. Não sei desde que momento estava ali. Quando meu olhar encontrou o dela, ela desviou-o. Olho mais demoradamente para a garota. Posso perceber que é bonita. Não como as fotos dos perfis que via por aí, cheias de filtros e efeitos. Ela tinha uma beleza suave, delicada, real. Uma beleza que convidava a ser explorada. Cabelos longos, boca bem desenhada e olhos que pareciam refletir sua alma. Sem meu amuleto (melhor dizendo, o celular), não consigo fugir do encantamento que, de repente, aquela garota me provocou.

Quando me dou conta, eu era quem a estava encarando. Ela parece perceber a situação e cora de leve. Isso é paquera, então? Nossos olhares se cruzam e se desviam por mais algumas vezes. Meu ponto está próximo. Sou tomado por tanta curiosidade em relação àquela garota que, simplesmente, não quero ser confrontado com a possibilidade de não vê-la de novo. Encontrei-a no mesmo ônibus duas vezes aquele dia. Era possível que já nos tivéssemos encontrado ali mais vezes, mas como eu iria saber? Poderia ser apenas uma feliz coincidência.

Insuflado de repentina coragem, aproximo-me dela. Digo oi e puxo conversa. Ela se mostra interessada. A três pontos da minha descida, posso descobrir que moramos e trabalhamos em locais próximos e já havíamos compartilhado o mesmo ônibus várias vezes. Eu nunca a havia notado antes, até esse dia. Até o momento pela manhã, em que tropecei nos seus tênis. Mas, principalmente, até essa volta para casa, em que esqueço o celular no trabalho e posso prestar atenção a ela. Talvez essa história tenha continuidade, e tem tudo para ter, pois marcamos um novo encontro no ônibus para o dia seguinte, pela manhã. Não sei como será, já que ando desacostumado a romances reais. Mas, confesso, estou louco para descobrir.

terça-feira, 31 de março de 2015

Só sei que nada sei!



Raulzito já dizia: "eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo". Como ele estava certo! O mundo está cheio de gente com razão. Gente que sabe demais, com opinião sobre tudo. Dos buracos negros de Stephen Hawking (contestados pelo próprio mais tarde) a uma improvável partida de futebol entre o Bola Murcha F.C. e o Frangos Pelados.

Seja qual for o assunto, está garantido um acalorado fórum de discussões. Se forem protegidas pelos filtros da internet, então, preparem os ouvidos (ou os olhos, para ler, e dedos, para digitar)! Mais que o nível da discussão, importa ter uma opinião. Manifestar-se sobre qualquer assunto. Bradar uma posição, ainda que ela não seja realmente sua, mas mais uma modinha do momento. Não se trata apenas de ter uma opinião, mas de gritá-la para o mundo e vencer pelo grito. Como se houvesse vencedores na imaginária disputa em que falta bom-senso e sobra ignorância.

Hoje, não ter uma opinião pronta é não se posicionar, é estar em cima do muro. Mudar de opinião, então, é como um diagnóstico de birutice, e aqui falo daquela biruta que se move conforme o vento (daí o termo popular usado como sinônimo de bobice, maluquice, o que acaba dando no mesmo). No afã de ter uma opinião, muitas vezes não refletimos, mas apenas reproduzimos um discurso dominante. A opinião quase vomitada causa alívio imediato e conforto momentâneo.

O mundo anda bipolar demais. Lembra a época da minha infância, em que enxergava o mundo a partir da perspectiva do "bem" e do "mal". O bem era representado pelos heróis e o mal pelos vilões dos desenhos a que eu assistia. O esperado era que, quanto mais amadurecêssemos, mais essas perspectivas excludentes dessem lugar a visões de mundo mais ponderadas. Porque nada existe na sua forma pura. Nem o bem é somente bem e nem o mal é somente mal. Mas não parece ocorrer isso. Não no mundo em que habito. Pode pedir licença para descer agora?

Ideias de certo e errado são vendidas. Padrões são perpetuados. Até ideais de felicidade são disseminados, como se isso não fosse algo tão íntimo. O que agrada à maioria não, necessariamente, agrada a todos. Nem um pote de Nutella (hmmm) satisfaz a todo o mundo! Mas não importa, as minhas opiniões são mais importantes que as suas e, se eu gosto de Nutella, você deve ser um louco se não gostar também (não estou ganhando para fazer propaganda, apenas sou chocólatra rsrs).

A esquizofrenia coletiva que vejo está quase nesse nível. Se, antes, política e religião eram considerados assuntos polêmicos, hoje, esse rol foi consideravelmente ampliado. Tudo gera polêmica. As pessoas são enquadradas, formas de pensar e agir são tiranamente ditadas. Há um fluxo, um contra fluxo e resquícios de humanidade nesse meio. Sobram cobranças, ansiedade e frustrações. Falta autenticidade, porque já não nos conhecemos minimamente. Não admira estarmos adoecendo tanto.

As pessoas estão cheias de razão! E, se têm tanta razão, facilmente a perdem por motivos banais. Por encontrar alguém que pensa diferente. Perdida a razão, vai-se nossa humanidade. Fica o lado mais bruto, mais selvagem. Aquele da intolerância, dos pré-julgamentos, dos preconceitos. Não aquele lado que agrega, mas o que destrói.

Faço aqui uma prece por um mundo mais imperfeito. Com menos juízes, menos dedos em riste. Com mais tolerância e mais respeito também. Com mais abraços (não dizem que o mundo cabe em um abraço?). Um mundo mais plural, mais reticente. Com menos discursos prontos e mais humanidade. Por um mundo de gente menos cheia de razão. Gente que se permita pensar, refletir, e não vomitar uma opinião. Gente que não tenha uma opinião de imediato, gente que se permita mudar de opinião. Gente mais gente. Que, às vezes, ponha seu rabinho entre as pernas e se recolha a sua insignificância perante esse mundão de meu Deus. Porque, como diria Sócrates, "só sei que nada sei".

quarta-feira, 18 de março de 2015

És tu, Saturno!



Mariana andava inquieta. Introspectiva, pensativa, ansiosa, quase angustiada, diria. Não sabia precisar o que lhe afligia. Por várias noites, chegava a perder o sono: um pensamento qualquer lhe vinha, seguido por outro, mais outro e outros tantos. Quando se dava conta, o sol já vinha nascendo e ela, ali, entregue às suas caraminholas.

Faria aniversario dali a duas semanas. Trinta anos. Como assim, três décadas? Trinta anos, assim, tão de repente? Seria esse o motivo de suas inquietações? Resolveu desabafar com uma amiga. Falou de tudo e nada. Sim, porque vivia um momento em que tudo era intenso: se era para sorrir, o riso vinha alto, estridente, rompantes de alegria extrema; se era para chorar, as lágrimas brotavam do fundo de sua alma, ao melhor estilo dramalhão. Só não compreendia a razão de tanta inconstância.

A amiga, chegada aos assuntos cósmicos, logo deu o diagnóstico: a culpa é de Saturno! Mariana, nem um pouco entendida de astrologia e afins, continuava sem entender suas agitações internas. A amiga explicou: Saturno demora vinte e nove anos para completar uma volta em torno do Sol. Um ano em Saturno equivale a vinte e nove anos terrestres. O retorno de Saturno influencia nossas vidas, sendo o primeiro retorno nossa primeira grande crise. Ela estava vivendo a crise dos trinta, ou, cosmicamente, o primeiro retorno de Saturno.

- Você está pesando o que fez com a sua vida até agora. Estudou o que queria? Trabalha com o que sonhava quando era mais nova? Tem sua casa, seu carro, suas coisas? Casou, tem filhos? Amadureceu? Sim, porque amadurecer é isso. Os trinta anos batem à sua porta e você ainda não teve grandes feitos na vida. Por isso esse sofrimento.

- Obrigada, Marcela, por sua delicadeza em afirmar minha insignificância!

- Não é insignificância, a maioria das pessoas ainda não realizou aos trinta aquilo que imaginava quando era criança. Você lembra como você, aos dez anos de idade, se via aos trinta?

- Sempre achei que, aos trinta, estaria comandando uma empresa, teria dois filhos, um ótimo marido, moraria em uma cobertura na praia e viajaria duas vezes ao ano para a Europa. Hoje estou aqui, a duas semanas dos trinta, e tudo o que tenho é um trabalho que me serve para pagar as contas, dois cachorros, uma quitinete alugada, um namorado que foge de compromisso e o único lugar que consigo ir duas vezes ao ano é ao sítio dos meus pais a trezentos quilômetros daqui!

- Bem-vinda aos trinta!

- Não quero! Quero voltar aos dez! Quero, sei lá, largar tudo (o que não vai ser difícil, já que não tenho nada), pegar uma mochila e viajar o mundo. Quero andar por aí, sem rumo, conhecer novas culturas, novas pessoas, dar um significado para minha vida. Ou, então, largar o emprego e virar artista! Ai, a verdade é que não sei o que quero!

Marcela continuou explicando sobre as voltas de Saturno. Sugeriu que Mariana fizesse seu mapa natal, para saber em que casa ela tinha Saturno. Disse que era provável que fosse na nona casa, pela vontade dela em viajar pelo mundo. Era preciso conhecer as relações de Saturno com outros planetas no seu mapa de nascimento, para compreender melhor a influência do astro em sua vida. Continuou falando por horas e, por fim, dadas as angústias da amiga, sugeriu que ela fizesse mesmo era terapia.

A conversa com a amiga deixou Mariana ainda mais agitada. Resolveu caminhar sozinha pela praia, pois o mar costumava acalmá-la. Saturno, pensava. Como se não bastasse sofrer influências de hormônios, da TPM, até da lua, ainda tinha mais essa de Saturno? Quanto tempo duraria a tal crise dos trinta? Amadurecer realmente não era fácil, pensou.

Colocou sua vida na balança. Começou por aquilo que não estava bom: não tinha o melhor emprego do mundo; ainda não tinha conseguido estudar temas que realmente achava interessantes, como artes, música, cinema e literatura, pois tinha que priorizar aqueles que lhe dessem algum retorno profissional mais imediato (viva o mundo corporativo!); não tinha sua própria casa; seu carro ainda estava sendo pago em suaves (e quase infinitas) prestações; e seu namorado parecia evitar qualquer sinal de compromisso.

Quando uma lágrima teimosa quase rolou por sua face, ela molhou os pés descalços no mar. A água fria em contraste com a areia quente fez-lhe recuperar as energias. Pensou que, talvez, sua vida não estivesse assim tão ruim. Tudo é relativo. Um ano em Saturno dura quase trinta anos na Terra. Em Saturno, ela seria não mais que um bebê! Tudo bem que ainda lhe faltava muito daquilo que um dia projetara. Mas não estava tão longe assim. Além disso, as projeções que fez para sua vida há quinze, vinte anos, não lhe pareciam as melhores naquele momento. Porque a vida não é um plano estático a ser seguido cegamente. Mudanças de planos são necessárias também.


Paradoxalmente, ficou mais tranquila ao constatar o tamanho de suas inquietações naquele momento. Sentiu-se mais viva. Questionar-se, provocar-se, deveria ser sinal de amadurecimento. Sinal de que não estava simplesmente deixando a vida passar, mas assumindo o controle sobre a própria existência. Ainda que esta fosse influenciada por forças que estavam além de sua alçada.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Melhores amigos

Hoje, resolvi fazer algo diferente. Posto aqui não um texto meu, mas um de autoria de meu irmão, que, nos momentos de ócio criativo, também é chegado às letras =D



Eram melhores amigos, daquele tipo que parecem irmãos. Faziam tudo juntos, tinham os mesmos gostos (inclusive para mulheres) e os mesmos sonhos. Amigos de infância, vizinhos de porta, estudavam na mesma turma e, até mesmo na escolinha de futebol, jogavam sempre no mesmo time. Revezavam a braçadeira de capitão e nem mesmo isso era motivo para brigas ou inveja. A relação de amizade era tão forte, eram tão ligados que bastava um cair doente para o outro adoecer, pouco tempo depois.


Durante o tempo colegial, namoraram duas irmãs, gêmeas idênticas. Dividiam até os momentos mais românticos. Tudo ia muito bem, o tempo ia passando e a amizade crescendo cada vez mais. Então, veio a época da faculdade, a escolha do curso superior, os anseios da vida adulta. Com isso, surgiu a primeira diferença: enquanto Jonas queria Engenharia, Vicente flertava com o Direito. Foram dias angustiantes, questionamentos de ambas as partes, até que Jonas resolveu então cursar Direito, somente para agradar ao amigo e continuar a amizade.

Permaneceram colegas de turma e, enquanto Vicente era tido como excelente aluno, totalmente adaptado ao curso, Jonas se via cada vez mais triste, insatisfeito com a escolha e sem entusiasmo para os estudos. Sempre era aprovado nas disciplinas porque Vicente o "ajudava" nas provas. Vicente se via obrigado a isso, pois Jonas estava ali apenas para mantê-los unidos.

Quando Vicente resolveu fazer um estágio fora do país, tudo pareceu prestes a ruir. Jonas se viu pela primeira vez longe do amigo. Foi nesse período, sozinho, sem o amigo querido por perto, que ele conheceu Amanda, uma caloura do curso. Era uma jovem linda, a mais bela mulher que ele já tinha visto. Foi paixão imediata e rapidamente correspondida. Iniciaram um namoro e seu empenho na atividade acadêmica e suas notas deram uma guinada incrível.

Passaram-se meses e, enfim, era chegado o dia do retorno de Vicente. Os amigos estavam ansiosos pela retomada da amizade. Jonas foi buscá-lo no aeroporto, levando consigo sua amada (e estava nervosíssimo, ansioso pela aprovação do amigo). Para piorar a ansiedade, o voo estava atrasado em uma hora e meia, devido às más condições climáticas. Por ironia do destino, Jonas foi ao banheiro no exato momento em que Vicente cruzou a sala de desembarque e deu de cara com Amanda. Encantou-se com aquela desconhecida, praticamente paixão à primeira vista (realmente tinham o mesmo gosto para mulheres). Pensou em flertar, mas, por timidez e por estar procurando o amigo, resolveu desistir. Foi quando Jonas apareceu, deu um beijo na sua amada, cumprimentou efusivamente Vicente e partiu para as apresentações. Amanda, este é Vicente, meu grande amigo, meu melhor amigo, meu irmão. Vicente, esta é Amanda, a mulher mais linda que conheço, a mulher da minha vida, a única dona do meu coração. E Vicente a cumprimentou, num misto de tristeza e constrangimento. Estava tão sem graça que transpareceu o sentimento, a ponto de Jonas achar que o amigo a tinha reprovado.

Seguiram para casa e os minutos dentro do carro foram terríveis. Jonas puxava conversa e Vicente, monossilábico, parecia em outro planeta. Alguns dias se passaram e Jonas, cada vez mais triste, tinha certeza da reprovação do amigo e, talvez por isso, a amizade estava enfraquecida. Resolveu, então, chamar o amigo para uma conversa franca. Perguntou o porque da reprovação de Amanda e disse que se fosse preciso dava por acabado o relacionamento. Vicente o tranquilizou, teceu inúmeros elogios a ela, disse que seria impossível ele encontrar uma mulher melhor. Mas Jonas insistiu, pediu sinceridade, não conseguia entender o que estava acontecendo. Foi quando Vicente confessou. Disse estar perdidamente apaixonado pela mulher do seu melhor amigo e não via outra alternativa senão o distanciamento. Já não era mais digno daquela amizade.

Jonas mais uma vez se via em dúvida. Seguiria o namoro e acabaria com uma amizade tão bonita? Ou romperia com a mulher da sua vida para não afetar a relação entre os dois? Pensou, analisou, ponderou. Durante dias, só fazia isso. Amanda já não entendia o porquê do distanciamento. Então, ele tomou um decisão. Chamou o amigo e a namorada, explicou o ocorrido e deu sua sentença. Rompeu com Amanda, disse que agora ela era livre para iniciar um relacionamento com Vicente, um homem melhor que ele e que poderia fazê-la muito mais feliz. Vicente relutou, reclamou, disse que jamais aceitaria aquela situação e voltou a se sentir indigno de tamanha amizade. Não achava justo, mais uma vez, Jonas se sacrificar por ele. E resolveu se distanciar. Amanda passou a odiar Jonas por tal ato e ele então caiu em profundo desânimo. Tinha perdido de uma só vez o melhor amigo e o seu grande amor.

Meses se passaram, quando Jonas então soube do namoro entre Amanda e Vicente. Era também chegada a festa de formatura. Vicente foi orador da turma, fez um pronunciamento belíssimo, todos foram às lágrimas de tanta emoção. Colaram grau, tiveram um baile de gala e Amanda estava lá, sempre ao lado do novo amado, belíssima, estonteante. Todos invejavam Vicente, todos menos Jonas. Coube a Jonas o prêmio de consolação. Enamorou-se por Fabrícia, colega de turma, bonita, mas não tanto, e rejeitada pelos dois amigos durante os anos de faculdade.

Após 3 anos, Vicente casou-se com Amanda. Jonas foi apenas um convidado comum, sequer foi um dos padrinhos do noivo. Os dois amigos passaram de quase irmãos para meros colegas de classe. Vicente era reconhecido como um advogado de muito prestígio, enquanto Jonas não exercia a profissão. Casou-se com Fabrícia, um casamento mais por comodidade que realmente por amor ou qualquer outro sentimento.

Depois de algum tempo de casado, eis que, certo dia, Jonas, ao chegar de surpresa de uma viagem e adentrar em seu quarto, assusta-se e cai no chão. Ficou tão horrorizado com a cena, que seu coração não aguentou. Ali, literalmente, morrera de espanto. Em seu quarto, em sua cama, estavam sua mulher, Fabrícia, e seu amigo dos velhos tempos, Vicente. Os corpos nus, entrelaçados, os rostos corados e molhados de suor, após momentos tórridos de sexo.


Texto de Hélio Palácio de Andrade

domingo, 8 de março de 2015

Lembranças



Dias atrás surpreendi-me olhando antigas fotos. Como é gostosa sensação de rememorar, relembrar, reviver momentos delicadamente guardados na memória. Mais que comparar o passado com o presente, rindo das mudanças físicas, de comportamentos, de modinhas, é gostosa a saudade que dá daqueles momentos ali registrados. É quase como se as fotos tivessem cheiro e gosto.

Peguei-me pensando no nosso processo de constituição de memórias. Lembrei-me de uma situação da minha infância, quando estudava para uma prova de Português. Um dos assuntos da prova eram as benditas preposições. Após algumas horas de desespero tentando decorar (sim, sou dessa época!) a matéria, resolvi pegar a gramática e sair andando pela casa falando as bonitas em voz alta, de modo ritmado, quase cantado. Lembro que ria muito de como parecia uma boba fazendo aquilo. Mas funcionou. Não decorei as preposições. Aprendi-as. Tenho-as todas na memória até hoje, e isso já tem mais de vinte anos. Tudo bem, não sei em que mudou a minha vida o fato de saber dizer todas as preposições (ajudou muito nas provas, é verdade), mas tirei uma lição daquilo, embora só tenha voltado a pensar no assunto já adulta. Aprendi que a nossa memória é extremamente seletiva. E que, pelo menos para mim, as situações associadas com emoções são as que ficam. Se eu não tivesse feito papel de boba estudando as preposições, talvez as tivesse decorado para a prova e esquecido logo em seguida. Mas o ritmo cantado, os risos e a vergonha em poder ser vista se associaram ao aprendizado da matéria e fixaram-na em minha memória.

Das inúmeras situações que vivenciamos diariamente, provavelmente as que formarão nossas lembranças serão aquelas com alguma carga emocional implicada, aquelas que adquiriram relevância por nos tocar de alguma forma. Uma foto é significativa para mim quando, ao vê-la, quase consigo reviver a cena ali registrada. As fotos de antigamente, da minha época de infância e adolescência, antes das máquinas digitais ou smartphones – em que era preciso comprar o filme (!) e revelar os negativos para ter as fotos –, conseguem me evocar lembranças mais facilmente. Hoje tiramos fotos a toda hora, fazemos selfies e temos a comodidade de fazer tudo pelo celular. Temos muita facilidade, muitos estímulos. Entre tantos estímulos, fica difícil selecionar. E, se não selecionamos o que é significativo, esquecemos mais rapidamente.

Na nossa vida apressada de hoje, temos informação demais, alternativas demais. Ficamos perdidos em meio a tantos estímulos. É muito comum ligarmos o automático e sairmos para mais um dia cheio de compromissos e atividades. Na correria, sobra-nos pouco tempo para uma pausa, para tomar um caminho diferente, para desprogramar o cérebro da rotina. Para formar memórias.

Tenho algumas lembranças de infância que talvez meu filho nunca tenha semelhantes. Lembrança de brincar na rua até tarde, voltando para casa somente após ver os chinelos nas mãos de minha mãe, que eram o sinal para entrar imediatamente. Três fatores meio raros de ser ver, ainda mais juntos, hoje: brincar na rua; à noite; e ser corrigido a palmadas, chineladas ou seja lá o que for. Porque o mundo de hoje é diferente do de minha infância, e tenho de adequar-me a isso com o meu filho. Brincar fora de casa é igual a brincar no play, em um parque ou andar de bicicleta em algum lugar menos perigoso que a rua, sob nossa supervisão. E palmada já não pode, que dirá chinelada hoje em dia! Lembro das viagens de carro que fazíamos. Milhares de quilômetros por estradas esburacadas, sem segurança e com o carro lotado. Meu pai, único motorista nas aventuras de estrada, se aguentando à base de muito café. Creio que essas lembranças contribuíram para o fato de eu amar cheiro de café! Naquela época, lembro de curtir demais o percurso, sem pressa de chegar. Hoje, na maioria das vezes, viajamos de avião. Porque é mais rápido, mais seguro e a maioria das pessoas não quer perder dias de férias na estrada (claro que também não é mais tão caro como antes)! As preocupações com segurança, felizmente, predominam hoje e, tenho certeza que meus pais dariam importância a elas se existissem naquela época.

O fato é que são contextos diferentes. As mudanças acontecem em ritmo acelerado; não dá para comparar o mundo de hoje com o da década de oitenta. Mas, às vezes, me pego pensando em que tipos de lembranças meu filho terá de sua infância. Com tantos estímulos, tanta rapidez, tantos compromissos, tantas imposições.

Certa vez, ao buscá-lo na escola à tardinha, resolvi parar com ele para comermos um cachorro-quente, pois eu estava morta de fome. Dividimos um cachorro-quente e um refrigerante (melhor, eu comi quase tudo, pois ele não come a salsicha). No outro dia, ele pediu para irmos de novo e eu disse que não, pois não se pode comer isso sempre. Entre muitos e muitos por quês, expliquei-lhe que cachorro-quente e refrigerante só pode uma vez ou outra, pois não são muito saudáveis. Ele ignora constantemente minhas explicações e pede para comermos com frequência. Resolvi, por fim, deixar de lado todas as imposições a que estamos submetidos cotidianamente (cachorro-quente, como assim, e a dieta? Refrigerante para criança? Que crime!) e reservar-nos uns dias no mês para calmamente sentarmos junto ao carrinho de cachorro-quente, comermos, conversarmos, rirmos e curtir estarmos um com o outro. Uma quebra na rotina de voltar apressadamente para casa, em meio a um trânsito infernal. Talvez assim, quando ele for mais crescido, ao comer um cachorro-quente, sinta gosto de infância, gosto de momentos agradáveis vividos com sua mãe.

Essas pausas são importantes. Sempre que posso, e quando meu pequeno não está tão cansado que só quer mesmo ir para casa, faço essas pausas com ele. Seja na barraca de cachorro-quente, no parque, no shopping até. Porque o mais importante é desprogramar. Alterar um pouco a rota, fazer algo diferente, estar junto. Curtir o momento. Esquecer o celular, desligar por um instante do mundo, sair do automático. Entregar-se a momentos que virarão doces lembranças. Que deixarão gosto de saudade. Porque passa muito rápido. Quando espantar-me, ele terá crescido. E, dessa época, o que restará serão as lembranças.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Você só tem um dia!




Ele andava apressado e distraído entre a multidão que voltava para suas casas. Havia tido um longo dia de trabalho e se dirigia até um estacionamento onde havia deixado seu carro. Os rostos e vozes misturavam-se em meio a todas aquelas pessoas igualmente apressadas e cansadas. Ele tinha o olhar perdido, olhava tudo e não distinguia o que via; seguia cansado e entregue a seus próprios pensamentos.

De repente, ele viu uma moça de seus trinta e tantos anos vindo em sua direção. Não era bonita, mas tinha uma presença marcante, uma aura de mistério que o absorveu. Ela olhava fixamente para ele. Tão fixamente, que o assustou. Não parecia um flerte, era mais que isso. Ele não sabia explicar. Ao perceber que a moça se aproximava, teve vontade de fugir, correr dali. Confessou a si mesmo que sentiu medo daquele olhar.

Mas ele não correu. A moça veio até ele. Olhou dentro de seus olhos e lançou:

- Você só tem um dia!

- Desculpe?

- Você só tem um dia. Não queria assustá-lo, mas não consegui conter-me. Senti algo tão forte quando o vi, não é que eu queira saber dessas coisas, mas eu sei. Simplesmente vejo. E eu vi você. Amanhã, exatamente nesse horário, 18:53, você dará seu último suspiro.

Ele arregalou os olhos. Tentou dizer alguma coisa, mas as palavras não saíam. Não conseguia articular as frases e, assustado, soltou uma espécie de grunhido.

- Desculpe, moço, sei que o estou assustando, mas senti que devia falar-lhe. Eu vi assim que meus olhos cruzaram com os seus. Será rápido, fulminante. Desculpe por lhe falar isso.

- Moça, eu não a conheço, achei a sua abordagem muito inapropriada e devo lhe dizer que você é uma maluca. Eu não me importo com o que você viu porque eu simplesmente não acredito nessas coisas. Passe bem!

Virou-se e foi embora. Deveria ser uma louca, não daria crédito àquilo. Seguiu para sua casa, seu refúgio depois daquele dia exaustivo. Não demorou a adormecer. Acordou no dia seguinte apressado, como sempre. Tomou um banho, engoliu seu café da manhã e vestiu-se para trabalhar. Enquanto dava o nó em sua gravata, lembrou-se da mulher do dia anterior. As palavras dela: "você só tem um dia". Bobagem, pensou. Continuou a arrumar a gravata. Viu sua imagem no espelho. Bem-arrumado, parecia alguém importante. "Você só tem um dia". E se fosse verdade? Desperdiçaria seu último dia trabalhando?

Pegou o telefone e discou um número, mas desligou. Inventaria alguma desculpa para faltar ao trabalho, mas para quê? Se fosse seu último dia, que importância teria aquilo? Tirou as roupas de trabalho e vestiu bermuda, camiseta e chinelos.

Um filme de sua vida veio à sua mente. Deveria ser mesmo verdade que as pessoas veem suas vidas quando estão à beira da morte. Ele não sabia se iria morrer, mas viu imagens suas; como um filme, viu sua vida retroceder até o começo. Ele era expectador de sua própria existência naquele momento.

Assistiu à sua infância: uma infância comum, sem regalias, mas boa. Era o mais novo de três irmãos, os pais não tinham muitas posses, mas ele tivera uma infância relativamente feliz. Naquela hora, tomara consciência disso. Viu-se adolescente, cheio de conflitos e complexos, tentando desafiar aos pais e a outras figuras de autoridade. Riu de si mesmo, ou de sua imagem  que aparecia naquele filme. E viu-se adulto. As relações artificiais que construíra. A busca por poder e dinheiro, como meio de resolver os próprios complexos. Os relacionamentos mornos, desprovidos de paixão. Viu a noiva que abandonara às vésperas do casamento, por medo do compromisso, da responsabilidade em compartilhar sua vida com alguém. Sentiu desprezo pelo personagem de si mesmo a que assistia. Percebeu que já não gostava da pessoa que havia se tornado. Vivera até ali trinta e cinco anos, mas havia realmente vivido? Não tivera filhos, não escrevera um livro e sequer plantara uma árvore. Se fosse seu último dia, seria o fim de uma existência medíocre, com ares de dissimulada importância.

Segundo a vidente maluca, sua morte seria às 18:53. Restavam-lhe cerca de dez horas. Suas supostas últimas horas e o que faria? Saltar de paraquedas? Gastar todo o seu dinheiro com luxos desnecessários? Entregar-se a momentos de pura luxúria, morrendo nos braços de lindas (e caras) garotas de programa? Tudo isso parecia supérfluo, como sua própria vida lhe parecia agora.

Decidiu simplesmente sair. Deixou o carro em casa e foi andando. Há muito tempo não experimentava o prazer de fazer longas caminhadas. Andou sem rumo, sentindo uma onda de vigor invadir-lhe quando os raios de sol tocaram sua face. Quando percebeu, estava em um parque. Deitou na grama. Riu ao lembrar que, àquela hora, deveria estar preso no escritório. Mas estava ali, curtindo um momento de delicioso ócio. Adormeceu na relva. Dormiu profundamente. Quando acordou, já era hora do almoço. Teria um almoço tranquilo, nada de garfadas apressadas como de costume. Sua suposta morte só seria dali a mais de seis horas.

Comeu em um restaurante simples, que ele não frequentaria em um dia normal. Mas aquele não era um dia normal. Era o último dia de sua vida e entendeu que precisava de novas experiências. Surpreendeu-se com o sabor da comida, que fazia-lhe lembrar de sua mãe. Se continuasse vivo, precisaria voltar ali mais vezes.

Voltou a caminhar após o almoço, um andar sem pressa, sentindo o contato dos pés com o chão. Pensou no quanto aquilo tudo era estranho, a consciência da pretensa finitude da própria vida em questão de horas. As pessoas não deveriam jamais saber quando vão morrer. Ou deveriam? Assim teriam a chance de serem melhores, supôs.

Ainda restavam algumas horas até a fatídica 18:53. Resolveu andar de teleférico, ver a vida de cima em seus últimos momentos. Do alto, contemplou a cidade, as pessoas indo e vindo, a vida acontecendo. Sentiu-se vivo, logo quando estava supostamente à beira da morte. Em todo o tempo que morava na cidade, e já devia fazer dez anos, fez esse passeio em torno de quatro vezes. E assim mesmo, apenas para impressionar as garotas que levara ali.

Ao descer do bondinho, cruzou com uma mulher que lhe chamou a atenção. Era bonita, tinha o sorriso fácil e olhava para ele, dando típicos sinais de interesse. Vivera uma vida sem grandes paixões, seria possível apaixonar-se nos instantes finais? Trocou olhares com a moça, mas, por fim, foi embora. Não queria algo fugaz como sempre tivera. Enfim sentiu vontade de ter um romance duradouro, mas não tinha garantias nem em relação à própria existência naquela hora.

Quando o relógio marcou 18:00, ele decidiu ir à praia. Se tinha a opção de escolher um lugar para morrer, então que fosse perto do mar. Ele sempre gostou do mar. Quando mais jovem, aventurou-se como surfista. Atividade que foi sendo deixada de lado à medida em que tornava-se homem sério, de negócios. Não tinha mais tempo para o surfe, assim como para várias das coisas de que um dia gostara.

Andou perto das ondas por vários minutos. Às 18:50, deitou-se à beira do mar, sentindo o vaivém das ondas em suas pernas. Se a vidente estivesse certa, seu fim estava muito próximo. 18:51. O coração acelerou de ansiedade. Marcar hora com a morte não era algo agradável. 18:52. As batidas aceleradas do seu coração começam a acalmar-se. Deveria ser a calmaria da morte, a serenidade que muitas pessoas experimentam quando estão perto do fim. Olhou o relógio uma última vez. 18:53. Era chegada a hora. Fechou os olhos e tentou não pensar, deixar a cabeça leve. Fechou os olhos e esperou. Esperou. Esperou.

O relógio marcou 18:54, 18:55, 18:56, 18:57, 18:58, 18:59. Às 19:00, ele levantou-se. Não acontecera nada. Ele continuava ali. Vivo, intacto. Jamais deveria ter dado ouvidos a uma maluca. Perdeu o dia por causa de uma visão de uma desconhecida. Mas... Perdeu? Será mesmo? Refletiu sobre suas últimas horas. O suposto encontro com a morte, foi, na verdade, um encontro consigo mesmo. Sentiu uma lufada de vida naquele instante. Estava mais vivo que nunca. Só o que morrera ali foram antigos hábitos e valores que ele vinha cultivando. Esses, sim, ele iria enterrar.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Um conto de Carnaval




Terça-feira de carnaval. Ele não gostava muito da festa, preferia aproveitar o feriado para pegar umas ondas, assistir a maratonas de filmes e séries, ler alguma coisa ou simplesmente descansar.  Ela também não gostava muito da folia. Geralmente fugia para a chácara dos avós ou ficava em casa descansando, colocando a leitura em dia e assistindo aos seus seriados preferidos.

Mas, naquela terça, ele resolveu sair. Os amigos encheram tanto que acabaram conseguindo levá-lo para a rua. Ela decidiu sair naquela tarde também. Na verdade, fora comprada pela irmã, que ofereceu-lhe um vestido (que a garota amava e a irmã não emprestava por nada) em troca de companhia.

O bloco exigia que fosse usada uma fantasia. Ele lembrou que tinha algumas, resquícios de carnavais passados. Abriu o armário para ver as opções. A manjada fantasia de super-homem, já desbotada e sem graça. Uma fantasia de príncipe, que ele devia ter usado há uns dez anos. Certamente não serviria. A fantasia de chapeleiro, da época em houve uma peça inspirada em "Alice no País das Maravilhas", na já distante época de escola. Essa era legal; resolveu experimentá-la, mas ficou apertada. Sobrou-lhe somente uma surrada fantasia de pierrô e, por fim, vestiu-a. Teria de ser ela mesma. Era confortável, apesar do calor insuportável lá fora.

Ela, contrariada, foi escolher sua fantasia. Pensou no vestido que ganharia, o que fez aumentar sua disposição. Pegou algumas no seu armário e outras no da irmã. Começou pela de Mulher-Maravilha da irmã. Colada demais, a irmã era mais magra, essa não cairia bem. Pegou uma de princesa, que logo descartou, pois sentiu-se com seis anos de idade. Olhou sua velha fantasia de Alice, que ela adorava. Iria com ela, claro. Mas, ao vesti-la, descobriu que estava com um enorme rasgo nas costas. Não teria tempo de arrumar. Então, pegou uma fantasia de colombina que tinha há alguns anos. Colombina no carnaval, pensou, e riu-se do clichê. Mas era confortável; pronto, estava decidido.

Saíram de suas casas, o pierrô e a colombina, rumo ao bloco de carnaval. Ele, com os amigos. Ela, com a irmã e mais uma amiga. A festa estava boa, a animação era contagiante, apesar de nenhum dos dois estar inicialmente disposto a sair. As ruas escaldantes exalavam uma mistura de suor, bebida e alegria. Era difícil não se envolver com aquele clima. Ele entrou na onda. Ela também. Era o último dia de carnaval e a festa estava boa.

O calor estava infernal; ele se afastou para buscar mais uma cerveja. Ela também foi pegar uma bebida e, nesse instante, eles se encontraram. Ele olhou para a colombina; ele ali, parado,vestido de pierrô. A colombina, o pierrô e a multidão. Em um instante, a multidão sumiu de seus olhos, e só havia ela, a colombina. A imagem que ele iria guardar para sempre. A atração foi recíproca. Ela até esqueceu que combinara de levar uma bebida para a irmã.

Quase não falaram, mas ficaram juntos aquele resto de tarde. Ele tinha um cheiro bom, apesar de misturado a álcool e a sua transpiração. Ela tinha um cheiro doce, mas não enjoativo. Um doce gostoso, que emanava especialmente de seus longos cabelos pretos. O bloco começava a dissipar-se, as primeiras pessoas já iam embora. Eles permaneceram abraçados, alheios a tudo.

Quando começava a escurecer, ele perguntou-lhe seu nome e pediu que tirassem as máscaras. Ela quase cedeu. Então, lembrou-se de que era terça-feira de carnaval. No outro dia, seria quarta de cinzas, era a vida voltando ao normal. Tirar as máscaras seria quebrar o encanto daquele momento, que ela queria guardar para sempre. Trocar nomes, telefones, despir-se daquela aura mágica e criar expectativas, para quê? Para desapontar-se, certamente. Amores nascidos no carnaval, seria possível? Decerto, os cupidos de plantão ali naquele meio eram todos trapalhões, dispostos apenas a divertir-se com os enamorados que ali surgissem. Romances breves, talvez, amores a longo prazo, provavelmente não.

Despediram-se com um longo beijo e tomaram o rumo de suas casas. A imagem, o cheiro e o gosto daquela colombina ficariam eternizadas para aquele pierrô. Este também estaria gravado para sempre naquela moça colombina.

Ah, o carnaval e sua magia, que juntara aquelas duas almas por um breve momento. Se não fosse carnaval, talvez eles jamais tivessem se encontrado. Em outro contexto, poderiam sequer se haverem notado. Em outro contexto, porém, eles poderiam ter-se apresentado. César e Marina. Poderiam ter conversado por horas a fio e descoberto que, sim, eles tinham muito em comum. Que um romance real poderia surgir dali, desde que eles tivessem tirado as máscaras. Em outro contexto, eles poderiam se descobrir apaixonados, não pelas imagens que formaram um do outro, mas pelas pessoas reais por trás das fantasias de pierrô e colombina. Em outro contexto, talvez. Mas, ah, é carnaval.



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