quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Você só tem um dia!




Ele andava apressado e distraído entre a multidão que voltava para suas casas. Havia tido um longo dia de trabalho e se dirigia até um estacionamento onde havia deixado seu carro. Os rostos e vozes misturavam-se em meio a todas aquelas pessoas igualmente apressadas e cansadas. Ele tinha o olhar perdido, olhava tudo e não distinguia o que via; seguia cansado e entregue a seus próprios pensamentos.

De repente, ele viu uma moça de seus trinta e tantos anos vindo em sua direção. Não era bonita, mas tinha uma presença marcante, uma aura de mistério que o absorveu. Ela olhava fixamente para ele. Tão fixamente, que o assustou. Não parecia um flerte, era mais que isso. Ele não sabia explicar. Ao perceber que a moça se aproximava, teve vontade de fugir, correr dali. Confessou a si mesmo que sentiu medo daquele olhar.

Mas ele não correu. A moça veio até ele. Olhou dentro de seus olhos e lançou:

- Você só tem um dia!

- Desculpe?

- Você só tem um dia. Não queria assustá-lo, mas não consegui conter-me. Senti algo tão forte quando o vi, não é que eu queira saber dessas coisas, mas eu sei. Simplesmente vejo. E eu vi você. Amanhã, exatamente nesse horário, 18:53, você dará seu último suspiro.

Ele arregalou os olhos. Tentou dizer alguma coisa, mas as palavras não saíam. Não conseguia articular as frases e, assustado, soltou uma espécie de grunhido.

- Desculpe, moço, sei que o estou assustando, mas senti que devia falar-lhe. Eu vi assim que meus olhos cruzaram com os seus. Será rápido, fulminante. Desculpe por lhe falar isso.

- Moça, eu não a conheço, achei a sua abordagem muito inapropriada e devo lhe dizer que você é uma maluca. Eu não me importo com o que você viu porque eu simplesmente não acredito nessas coisas. Passe bem!

Virou-se e foi embora. Deveria ser uma louca, não daria crédito àquilo. Seguiu para sua casa, seu refúgio depois daquele dia exaustivo. Não demorou a adormecer. Acordou no dia seguinte apressado, como sempre. Tomou um banho, engoliu seu café da manhã e vestiu-se para trabalhar. Enquanto dava o nó em sua gravata, lembrou-se da mulher do dia anterior. As palavras dela: "você só tem um dia". Bobagem, pensou. Continuou a arrumar a gravata. Viu sua imagem no espelho. Bem-arrumado, parecia alguém importante. "Você só tem um dia". E se fosse verdade? Desperdiçaria seu último dia trabalhando?

Pegou o telefone e discou um número, mas desligou. Inventaria alguma desculpa para faltar ao trabalho, mas para quê? Se fosse seu último dia, que importância teria aquilo? Tirou as roupas de trabalho e vestiu bermuda, camiseta e chinelos.

Um filme de sua vida veio à sua mente. Deveria ser mesmo verdade que as pessoas veem suas vidas quando estão à beira da morte. Ele não sabia se iria morrer, mas viu imagens suas; como um filme, viu sua vida retroceder até o começo. Ele era expectador de sua própria existência naquele momento.

Assistiu à sua infância: uma infância comum, sem regalias, mas boa. Era o mais novo de três irmãos, os pais não tinham muitas posses, mas ele tivera uma infância relativamente feliz. Naquela hora, tomara consciência disso. Viu-se adolescente, cheio de conflitos e complexos, tentando desafiar aos pais e a outras figuras de autoridade. Riu de si mesmo, ou de sua imagem  que aparecia naquele filme. E viu-se adulto. As relações artificiais que construíra. A busca por poder e dinheiro, como meio de resolver os próprios complexos. Os relacionamentos mornos, desprovidos de paixão. Viu a noiva que abandonara às vésperas do casamento, por medo do compromisso, da responsabilidade em compartilhar sua vida com alguém. Sentiu desprezo pelo personagem de si mesmo a que assistia. Percebeu que já não gostava da pessoa que havia se tornado. Vivera até ali trinta e cinco anos, mas havia realmente vivido? Não tivera filhos, não escrevera um livro e sequer plantara uma árvore. Se fosse seu último dia, seria o fim de uma existência medíocre, com ares de dissimulada importância.

Segundo a vidente maluca, sua morte seria às 18:53. Restavam-lhe cerca de dez horas. Suas supostas últimas horas e o que faria? Saltar de paraquedas? Gastar todo o seu dinheiro com luxos desnecessários? Entregar-se a momentos de pura luxúria, morrendo nos braços de lindas (e caras) garotas de programa? Tudo isso parecia supérfluo, como sua própria vida lhe parecia agora.

Decidiu simplesmente sair. Deixou o carro em casa e foi andando. Há muito tempo não experimentava o prazer de fazer longas caminhadas. Andou sem rumo, sentindo uma onda de vigor invadir-lhe quando os raios de sol tocaram sua face. Quando percebeu, estava em um parque. Deitou na grama. Riu ao lembrar que, àquela hora, deveria estar preso no escritório. Mas estava ali, curtindo um momento de delicioso ócio. Adormeceu na relva. Dormiu profundamente. Quando acordou, já era hora do almoço. Teria um almoço tranquilo, nada de garfadas apressadas como de costume. Sua suposta morte só seria dali a mais de seis horas.

Comeu em um restaurante simples, que ele não frequentaria em um dia normal. Mas aquele não era um dia normal. Era o último dia de sua vida e entendeu que precisava de novas experiências. Surpreendeu-se com o sabor da comida, que fazia-lhe lembrar de sua mãe. Se continuasse vivo, precisaria voltar ali mais vezes.

Voltou a caminhar após o almoço, um andar sem pressa, sentindo o contato dos pés com o chão. Pensou no quanto aquilo tudo era estranho, a consciência da pretensa finitude da própria vida em questão de horas. As pessoas não deveriam jamais saber quando vão morrer. Ou deveriam? Assim teriam a chance de serem melhores, supôs.

Ainda restavam algumas horas até a fatídica 18:53. Resolveu andar de teleférico, ver a vida de cima em seus últimos momentos. Do alto, contemplou a cidade, as pessoas indo e vindo, a vida acontecendo. Sentiu-se vivo, logo quando estava supostamente à beira da morte. Em todo o tempo que morava na cidade, e já devia fazer dez anos, fez esse passeio em torno de quatro vezes. E assim mesmo, apenas para impressionar as garotas que levara ali.

Ao descer do bondinho, cruzou com uma mulher que lhe chamou a atenção. Era bonita, tinha o sorriso fácil e olhava para ele, dando típicos sinais de interesse. Vivera uma vida sem grandes paixões, seria possível apaixonar-se nos instantes finais? Trocou olhares com a moça, mas, por fim, foi embora. Não queria algo fugaz como sempre tivera. Enfim sentiu vontade de ter um romance duradouro, mas não tinha garantias nem em relação à própria existência naquela hora.

Quando o relógio marcou 18:00, ele decidiu ir à praia. Se tinha a opção de escolher um lugar para morrer, então que fosse perto do mar. Ele sempre gostou do mar. Quando mais jovem, aventurou-se como surfista. Atividade que foi sendo deixada de lado à medida em que tornava-se homem sério, de negócios. Não tinha mais tempo para o surfe, assim como para várias das coisas de que um dia gostara.

Andou perto das ondas por vários minutos. Às 18:50, deitou-se à beira do mar, sentindo o vaivém das ondas em suas pernas. Se a vidente estivesse certa, seu fim estava muito próximo. 18:51. O coração acelerou de ansiedade. Marcar hora com a morte não era algo agradável. 18:52. As batidas aceleradas do seu coração começam a acalmar-se. Deveria ser a calmaria da morte, a serenidade que muitas pessoas experimentam quando estão perto do fim. Olhou o relógio uma última vez. 18:53. Era chegada a hora. Fechou os olhos e tentou não pensar, deixar a cabeça leve. Fechou os olhos e esperou. Esperou. Esperou.

O relógio marcou 18:54, 18:55, 18:56, 18:57, 18:58, 18:59. Às 19:00, ele levantou-se. Não acontecera nada. Ele continuava ali. Vivo, intacto. Jamais deveria ter dado ouvidos a uma maluca. Perdeu o dia por causa de uma visão de uma desconhecida. Mas... Perdeu? Será mesmo? Refletiu sobre suas últimas horas. O suposto encontro com a morte, foi, na verdade, um encontro consigo mesmo. Sentiu uma lufada de vida naquele instante. Estava mais vivo que nunca. Só o que morrera ali foram antigos hábitos e valores que ele vinha cultivando. Esses, sim, ele iria enterrar.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Um conto de Carnaval




Terça-feira de carnaval. Ele não gostava muito da festa, preferia aproveitar o feriado para pegar umas ondas, assistir a maratonas de filmes e séries, ler alguma coisa ou simplesmente descansar.  Ela também não gostava muito da folia. Geralmente fugia para a chácara dos avós ou ficava em casa descansando, colocando a leitura em dia e assistindo aos seus seriados preferidos.

Mas, naquela terça, ele resolveu sair. Os amigos encheram tanto que acabaram conseguindo levá-lo para a rua. Ela decidiu sair naquela tarde também. Na verdade, fora comprada pela irmã, que ofereceu-lhe um vestido (que a garota amava e a irmã não emprestava por nada) em troca de companhia.

O bloco exigia que fosse usada uma fantasia. Ele lembrou que tinha algumas, resquícios de carnavais passados. Abriu o armário para ver as opções. A manjada fantasia de super-homem, já desbotada e sem graça. Uma fantasia de príncipe, que ele devia ter usado há uns dez anos. Certamente não serviria. A fantasia de chapeleiro, da época em houve uma peça inspirada em "Alice no País das Maravilhas", na já distante época de escola. Essa era legal; resolveu experimentá-la, mas ficou apertada. Sobrou-lhe somente uma surrada fantasia de pierrô e, por fim, vestiu-a. Teria de ser ela mesma. Era confortável, apesar do calor insuportável lá fora.

Ela, contrariada, foi escolher sua fantasia. Pensou no vestido que ganharia, o que fez aumentar sua disposição. Pegou algumas no seu armário e outras no da irmã. Começou pela de Mulher-Maravilha da irmã. Colada demais, a irmã era mais magra, essa não cairia bem. Pegou uma de princesa, que logo descartou, pois sentiu-se com seis anos de idade. Olhou sua velha fantasia de Alice, que ela adorava. Iria com ela, claro. Mas, ao vesti-la, descobriu que estava com um enorme rasgo nas costas. Não teria tempo de arrumar. Então, pegou uma fantasia de colombina que tinha há alguns anos. Colombina no carnaval, pensou, e riu-se do clichê. Mas era confortável; pronto, estava decidido.

Saíram de suas casas, o pierrô e a colombina, rumo ao bloco de carnaval. Ele, com os amigos. Ela, com a irmã e mais uma amiga. A festa estava boa, a animação era contagiante, apesar de nenhum dos dois estar inicialmente disposto a sair. As ruas escaldantes exalavam uma mistura de suor, bebida e alegria. Era difícil não se envolver com aquele clima. Ele entrou na onda. Ela também. Era o último dia de carnaval e a festa estava boa.

O calor estava infernal; ele se afastou para buscar mais uma cerveja. Ela também foi pegar uma bebida e, nesse instante, eles se encontraram. Ele olhou para a colombina; ele ali, parado,vestido de pierrô. A colombina, o pierrô e a multidão. Em um instante, a multidão sumiu de seus olhos, e só havia ela, a colombina. A imagem que ele iria guardar para sempre. A atração foi recíproca. Ela até esqueceu que combinara de levar uma bebida para a irmã.

Quase não falaram, mas ficaram juntos aquele resto de tarde. Ele tinha um cheiro bom, apesar de misturado a álcool e a sua transpiração. Ela tinha um cheiro doce, mas não enjoativo. Um doce gostoso, que emanava especialmente de seus longos cabelos pretos. O bloco começava a dissipar-se, as primeiras pessoas já iam embora. Eles permaneceram abraçados, alheios a tudo.

Quando começava a escurecer, ele perguntou-lhe seu nome e pediu que tirassem as máscaras. Ela quase cedeu. Então, lembrou-se de que era terça-feira de carnaval. No outro dia, seria quarta de cinzas, era a vida voltando ao normal. Tirar as máscaras seria quebrar o encanto daquele momento, que ela queria guardar para sempre. Trocar nomes, telefones, despir-se daquela aura mágica e criar expectativas, para quê? Para desapontar-se, certamente. Amores nascidos no carnaval, seria possível? Decerto, os cupidos de plantão ali naquele meio eram todos trapalhões, dispostos apenas a divertir-se com os enamorados que ali surgissem. Romances breves, talvez, amores a longo prazo, provavelmente não.

Despediram-se com um longo beijo e tomaram o rumo de suas casas. A imagem, o cheiro e o gosto daquela colombina ficariam eternizadas para aquele pierrô. Este também estaria gravado para sempre naquela moça colombina.

Ah, o carnaval e sua magia, que juntara aquelas duas almas por um breve momento. Se não fosse carnaval, talvez eles jamais tivessem se encontrado. Em outro contexto, poderiam sequer se haverem notado. Em outro contexto, porém, eles poderiam ter-se apresentado. César e Marina. Poderiam ter conversado por horas a fio e descoberto que, sim, eles tinham muito em comum. Que um romance real poderia surgir dali, desde que eles tivessem tirado as máscaras. Em outro contexto, eles poderiam se descobrir apaixonados, não pelas imagens que formaram um do outro, mas pelas pessoas reais por trás das fantasias de pierrô e colombina. Em outro contexto, talvez. Mas, ah, é carnaval.



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Central de Atendimento, não!


Beatriz recebeu uma mensagem no celular. Era de seu banco, informando de uma compra realizada no seu cartão de crédito. Ela inconscientemente disparou seu alarme interno: não havia feito aquela compra, seu cartão só podia ter sido clonado!

Rapidamente, pegou o telefone e se pôs a discar o número da central de atendimento. Respirou fundo quando começou a ouvir a gravação que lhe causava arrepios: "disque 1 para cartão de crédito, 2 para saldos, 3 para aplicações, 4 para isso, 5 para aquilo, 6, 7, 8 (quais eram as primeiras opções mesmo?), 9 para falar com nossos atendentes... Discou o 9, pois já havia esquecido de todas as anteriores. Melhor falar logo com uma pessoa real a ter de ouvir toda a gravação novamente, pensou.

Mas não atende logo uma pessoa real; em vez disso, ela começa a ouvir uma nova mensagem com propagandas do banco, quase convencendo-a do quanto ela era privilegiada em ser cliente deles. Uma, duas, três, quatro repetições dessa mensagem (que Beatriz já sabia de cor), até que, enfim, fala uma atendente:

- SeuBanco, Cláudia, boa tarde, com quem falo por favor?

- Beatriz.

- Em que posso ajudá-la, Sra. Beatriz?

Beatriz explicou para a voz robotizada de Cláudia (seria mesmo uma pessoa ou mais uma gravação?) sobre a mensagem recebida e sobre a compra que ela não reconhecia.

- Desculpe, Sra. Beatriz, mas a senhora discou a opção errada e não tenho como ajudá-la. Solicito que disque a opção 1, em seguida a opção 3 e, após, a opção 4.

- Como assim, moça?

Era tarde, Beatriz já começava a ouvir a gravação novamente, que solicitava que ela escolhesse uma opção. Discou o 1, opção que ela lembrou. Mas, o que vinha em seguida? Discou qualquer coisa e, novamente, passava a ouvir a propaganda sobre as vantagens do seu banco. Após duas repetições sobre as maravilhas bancárias, atende uma nova voz robotizada:

- SeuBanco, Olavo, boa tarde, com quem falo, por favor?

- Beatriz.

- Em que posso ajudá-la, Sra. Beatriz?

O mesmo discurso? Deveria ser tudo gravação, Beatriz estava quase convencida. Com menos paciência que explicara a Cláudia, ela passou a falar a Olavo sobre a compra não reconhecida.

- Desculpe, senhora, mas não posso ajudá-la. A senhora terá de entrar em contato com a central de cartões e informar o problema.

- É o que estou tentando fazer!

- Peço que a senhora disque a opção 1 e, em seguida, a 3.

Contrariada, Beatriz fez o que ele indicou. Mais quatro minutos de propagandas do banco (que ela já sabia imitar perfeitamente), atende uma nova voz (ou seria gravação?):

- SeuBanco, Luana, boa tarde, com quem falo, por favor?

- Beatriz (sua voz começava a ficar estridente).

- Em que posso ajudá-la, Sra. Beatriz?

Beatriz teve a ligeira impressão de que a voz de Luana soava mais natural, apesar das frases idênticas às de Cláudia e Olavo. Teve a débil esperança de que ela poderia resolver seu problema.

- Moça, tive o meu cartão clonado, recebi uma mensagem informando de uma compra que não reconheço.

- Sra. Beatriz, desculpe, mas seus dados não foram carregados para mim e não consigo resolver seu problema.

- Como assim? Fiz tudo o que me pediram das outras vezes, estou há vinte minutos sendo transferida de um atendente a outro. Só quero resolver minha situação!

- Desculpe, senhora, é um problema no sistema, que não carregou os dados. Sem seus dados, não consigo ajudá-la.

Sistema. Tudo é culpa do sistema. Sartre estava certo, o inferno são os outros e, os outros, no caso, são o sistema! Quando você não consegue, não pode ou simplesmente não quer resolver alguma coisa, ponha a culpa no sistema. A raiva contra você será toda canalizada ao sistema!

- Moça, então, pelo amor de Deus, diga-me o que fazer! Não aguento mais isso!

- Vou transferi-la, senhora, aguarde um minuto.

Beatriz já se preparava para ouvir mais cinco repetições sobre as benesses do seu banco, quando, para sua surpresa, rapidamente atendeu uma nova voz:

- SeuBanco, Michele, boa tarde, com quem falo, por favor?

- Beatriz (sua voz já saía fraca, quase inaudível).

- O que deseja, Sra. Beatriz?

- Um pouco de ácido, por favor.

- Desculpe?

- Hã, moça, estou há meia hora ao telefone, tentando resolver o problema da clonagem do meu cartão. Não aguento mais, estou exausta, irritada e desesperançada com a condição humana. Primeiro tenho o meu cartão clonado, o que ressalta a fragilidade de nossas vidas, de nossa segurança e privacidade. Aí, quando tento resolver, sou jogada para todos os lados, de um robô a outro, sim, porque vocês fizeram treinamento para serem robôs. Tenho certeza que, quando chegam a seus postos de trabalho, trancam seus cérebros e corações nos armários e se põem a repetir comandos prontos. A verdade é que vocês são treinados não para ajudar-nos a resolver nossos problemas, mas para testar nossos limites e nossa paciência.

- Hã, senhora, em que posso ajudá-la, por favor?

A voz de Michele tinha um resquício de emoção, Beatriz percebeu. Certamente a catarse de Beatriz havia desestabilizado um pouco a moça.

- Desculpe, Michele, mas acho que você não pode me ajudar. Desejo uma boa tarde. Foi um prazer falar com você.

- Boa tarde, senhora. O SeuBanco agradece a ligação.

Beatriz desistiu. Entregou os pontos. Mais de meia hora ao telefone e não conseguira, sequer, cancelar o cartão, que dirá contestar a compra. Estava decidida a ir a sua agência no dia seguinte e exigir de sua gerente que fornecesse seu número pessoal, para resolver problemas desse tipo diretamente com ela. Afinal, se seu banco era tão maravilhoso quanto ela insistentemente ouvira anunciar, o mínimo que deveria fazer era poupá-la de utilizar a central de atendimento.

Beatriz olhou novamente a mensagem ao celular. A compra não reconhecida. Mas... espera! Teve um insight. A mensagem estava atrasada. Não era referente a uma compra do momento, mas a uma feita no dia anterior. Ela realmente havia feito aquela compra. Não havia sido clonada!

Ela riu. Gargalhou alto. Em seguida, lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. O riso misturado ao pranto. Aquela meia hora perdida, por conta de uma mensagem atrasada, de um esquecimento devido ao calor do momento. Chorava de raiva da situação, mas ria da loucura toda. As vozes robotizadas. As gravações com as opções e os benefícios de seu banco. A catarse com Michele. A reação da moça ao seu desespero. Pelo menos, não havia sido realmente clonada. Não havia mais que se preocupar com isso. Mas ainda iria pedir o telefone da gerente, pensou.

Resolveu tomar uma ducha para esfriar a cabeça e esquecer aquilo. Contudo, no banho, enquanto a água descia por suas costas, aquelas palavras insistiam em ocupar sua mente. Começavam assim: "Cliente, você sabe por que o SeuBanco é um banco feito para você?" As palavras da propaganda do banco. Aquela sobre os seus serviços extraordinários, lembrando-a do quanto ela era especial por ser cliente deles.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A vida não é um filme (mas bem que poderia ser)


Dias atrás assisti ao filme "Loucas pra casar". Sem spoilers, que isso é bem chato, e sem entrar no mérito se é bom ou ruim (não sou nenhuma crítica de cinema, apesar de adorar filmes), inicio este texto com ele, apesar de não ser o filme, propriamente, seu foco. Posso dizer que a película me surpreendeu, além de me fazer rir e, mais que tudo isso, me levou a refletir.

A fantasia é muito explorada no filme. Tanto que, às vezes, parece faltar um elemento de coesão para a trama. Bom, pelo menos para as mentes mais lógicas e lineares. A minha, que é mais flutuante que linear, embarcou nessa fantasia e saiu de lá baratinada. Há dias venho pensando e querendo escrever a respeito. A mensagem que fica para mim do filme é: sem fantasia, tudo o que sobra é a realidade.

E o que é a realidade, senão algo que temos de enfrentar diariamente, esteja o nosso humor bom ou não, tenhamos dormido o suficiente ou não, estejamos dispostos ou não? Lá está ela, feroz e impiedosa à nossa espreita. Muitas vezes ela é dura, impassível, sofrida até. Com isso, muitos tentam fugir, negá-la. Mecanismos para isso não faltam, e nem vou levar a conversa para o "psicologês". Aí entra a fantasia, que, para mim, desde que bem dosada (como tudo na vida), é super saudável. Faria aqui minha paráfrase à mensagem do filme: sem um mínimo de fantasia, não há vida saudável.

Não, não sou uma criatura alienada, não converso com pedras ou duendes, mas não deixo de por um pouco de fantasia em minha vida diária. Até porque sou mãe, e não acredito muito em mães que não sejam um pouquinho fantasiosas. Tem coisa mais gostosa que pegar carona na imaginação das crianças? Dar corda a um tanto de "por quês" e "e ses" que saem da mente de um garotinho de quatro anos? (Tudo bem, confesso que às vezes respondo às infinitas perguntas inicialmente contrariada, por causa justamente dela, a dose de realidade que nos impede de embarcar na fantasia. Felizmente, isso é logo superado)

É maravilhoso ver, de repente, a casa transformada em uma terra fantástica, habitada por coisas falantes, como carros e árvores:

- Mamãe, árvores não falam! (Como assim, chamada à realidade por uma criança?)

- Falam, sim, meu amor, desde que a gente queira.

- Ah, tá!

E a brincadeira recomeça, com a realidade em suspenso, deixada em seu devido lugar por ora. Fantasia e realidade se alternam na rítmica dança da vida. Tenha você quatro, quarenta ou oitenta anos, essa cadência entre fantasia e realidade deve, certamente, fazer parte de sua vida. Porque a vida sem fantasia seria, no mínimo, chata.

Mas eu sou muito "pé no chão", alguém pode dizer. Tudo bem, isso não elimina a fantasia de sua vida. Quer ver? Quantas vezes você já sonhou (dormindo ou acordado) que voava e isso era libertador? Quantas vezes ao dia sua mente vagueia enquanto você, por exemplo, toma um café ou coloca uma pilha de roupas na máquina de lavar? Quantas vezes você já se viu, no meio de um dia de trabalho, planejando as próximas férias, imaginando mil coisas a conhecer e a fazer? Quantas vezes você já assistiu a um filme e se viu no meio daquela história? Ou melhor, será que alguma vez você já não imaginou que a sua própria vida seria um filme, com uma trilha sonora bacana e enredo construído diariamente?

Espero que tenha respondido sim à maioria das perguntas. E que lembre de muitas outras situações fantasiosas (e deliciosas) já vividas. A fantasia é tão importante quanto a realidade. Pensamos no ato de sonhar como algo positivo (e um dos poucos que ainda é gratuito). E o que é o sonho, senão fantasia? Diria que a fantasia é um novo olhar sobre a realidade. Elas se complementam, não precisam se excluir.

Enquanto escrevo, lembro das fantasias que estão presentes na nossa cultura, no nosso imaginário coletivo. Coelho da Páscoa, Papai Noel, Super Heróis. Nossos filhos convivem com elas e nós as alimentamos. Eu, pelo menos, as alimento. Porque é revigorante ver os olhinhos brilharem, ver as teorias fantasiosas sendo construídas e testadas. Um dia, elas serão naturalmente refutadas. Porque nossas crianças irão crescer. Já não vão mais acreditar nessas fantasias. Mas não deixarão de sonhar, isso espero.

Tento finalizar o texto e uma música começa a tocar em minha mente. Uma música da trilha sonora da minha vida. Escolhida a dedo para compor o filme da minha existência. Se será sucesso de crítica e de público, quem pode saber? Isso não importa tanto. Mais importante é continuar escrevendo o roteiro desse filme. Com os pés bem firmes no chão e a cabeça viajando, levinha, nas nuvens.


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