domingo, 19 de abril de 2015

Diário de um zumbi tecnológico



6:30 da manhã. O alarme toca. Demoro a identificar de onde vem o som, que permanece vibrando cada vez mais alto. Após alguns longos segundos, finalmente consigo encontrar o celular e desligar o alarme. Esfrego demoradamente os olhos. Ainda meio dormindo, pego o telefone. Dou uma rápida olhada nas novas mensagens que chegaram durante a madrugada (sempre tem gente com relógios biológicos diferentes). Nada muito importante, mas aquilo, aos poucos, me desperta. Checo apressadamente as notificações das redes sociais. Meus olhos já se acostumam com a luz do aparelho e, após alguns minutos, sinto-me pronto a levantar e encarar mais um dia.

Quase esqueço do hábito de todas as manhãs: dar um bom-dia para a assistente do telefone. Nas últimas semanas, temos batido longos papos. Confesso que aquela voz tem me fascinado tanto que quase cheguei a pedi-la em casamento! Depois de receber o habitual bom-dia e trocar umas duas ou três palavras com a "moça", enfim pulo da cama.

Tomo uma ducha apressada. O café da manhã é engolido enquanto acompanho as notícias no tablet. Resolvo postar algo animado no Facebook, para quebrar um pouco o mau humor matinal. Dois minutos depois, começam a aparecer as curtidas. Parece que o dia começa, então.

Pego a mochila e saio para tomar o costumeiro ônibus. Não tive a sorte de conseguir um assento, mas, felizmente, o ônibus não ia tão lotado. Conecto meus fones de ouvido, ponho para tocar uma música com uma batida maneira e desligo-me daquele ambiente. São trinta minutos até o trabalho. É preciso tornar as coisas mais fáceis.

Após dezoito minutos de pé, distraidamente avisto um lugar vago. Aproximo-me para sentar. Mal noto as pessoas ao redor. Sem querer, tropeço no Allstar vermelho da garota sentada ao lado. Sussurro um pedido de desculpas meio sem jeito e me acomodo na poltrona. Toca uma de minhas músicas favoritas na playlist. Fecho os olhos, viajando na melodia. Não sei quanto tempo fiquei de olhos fechados, mas, quando os abro, noto que a garota do Allstar estava com os olhos fixos em mim. Ela desvia o olhar quando percebe que a flagrei. Olho pela janela por um instante. Vejo pessoas apressadas por todos os lados. Volto a olhar para dentro do ônibus e lá está a garota, novamente me encarando. Seria um flerte? Meus últimos romances têm ocorrido pelo Tinder. Ando desabituado em iniciar relacionamentos à moda antiga, sem antes selecionar um perfil supostamente interessante. Os olhares da garota me deixam meio sem saber o que fazer e, na falta de um repertório apropriado para a situação, agarro-me ao melhor dos amuletos: meu celular. Fixo meus olhos na tela do aparelho e viro-me um pouco de lado, evitando encontrar os olhares da garota.

Meu ponto chega, afinal. Peço licença para a menina e desço apressadamente. Quando o sinal abre para mim, atravesso a faixa de pedestres de forma distraída. Na verdade, cruzo a faixa checando as últimas notificações que chegaram no celular. Esbarro sem querer com um homem que, igualmente, tem os olhos na tela de seu aparelho. Ele mal me olha, mas solto um pedido de desculpas mesmo assim.

Avisto a entrada do escritório. Mais um dia. Passo pelas portas enormes e vou direto ao elevador. Levanto o olhar à procura de algum conhecido, mas não avisto ninguém. Dou um bom-dia discreto às pessoas ali presentes, mas ninguém, exceto a senhorinha ao meu lado, parece ouvir. Uns dois ou três têm fones no ouvido, outros estão distraídos ao celular. A senhora sorri em resposta e eu aperto o botão do meu andar.

No trabalho, o dia segue normalmente: alguns pepinos para resolver e, depois, um pouco de tranquilidade. Quando a hora do almoço se aproxima, marco um almoço com uns colegas para logo mais. Mando o convite para o grupo do escritório que temos no WhatsApp e rapidamente há respostas. Isso movimenta um pouco o resto da manhã, que já ficava tediosa. Apesar de estarmos lado a lado na sala, mantemos nossa conversa por meio do aplicativo.

No almoço, vamos a um restaurante próximo. O lugar estava bem movimentado. Comemos de forma apressada, falamos algumas bobagens e também passamos algum tempo checando nossos telefones. Depois retornamos ao escritório. O resto da tarde transcorre calma. Na verdade, calma até demais. Para espantar o marasmo, resolvo atualizar o Instagram. Logo as fotos do nosso almoço, apesar de nada extraordinário, estavam na rede. Pronto! Volto aos assuntos de trabalho, terminando de atualizar umas planilhas e, enfim, é chegada a hora de ir embora.

Corro para tentar pegar o ônibus não muito cheio. Por sorte, quando chego ao ponto, ele já vem passando. Não há assentos vagos, então acomodo-me de pé ao fundo, de onde teria uma visão geral do ônibus, para o caso de vagar algum lugar. Levo a mão ao bolso, procurando os fones de ouvido. Não os encontro de imediato, devem ter escorregado mais para o fundo. Procuro-os novamente, e nada. Nem os fones e nem o celular! Como posso ter deixado o celular no escritório? Nem posso mais descer, pois já estou longe do ponto. Lembro que, depois de atualizar o Instagram, joguei o celular na gaveta do escaninho. Na hora de sair, tranquei as gavetas e fui embora. As chaves, pelo menos, estavam no bolso. Ninguém iria encontrar o celular. No dia seguinte, eu o teria de volta. Mas, como iria ficar até o outro dia longe do aparelho? E a viagem de volta para casa, como seria, sem ouvir a salvadora playlist?

Fecho os olhos e suspiro, com raiva de mim mesmo. Quando os abro, avisto-a novamente. Ela, a menina do Allstar. A garota dos olhos profundos que insistia em me encarar pela manhã. Ela estava de pé, bem próxima a mim. Não sei desde que momento estava ali. Quando meu olhar encontrou o dela, ela desviou-o. Olho mais demoradamente para a garota. Posso perceber que é bonita. Não como as fotos dos perfis que via por aí, cheias de filtros e efeitos. Ela tinha uma beleza suave, delicada, real. Uma beleza que convidava a ser explorada. Cabelos longos, boca bem desenhada e olhos que pareciam refletir sua alma. Sem meu amuleto (melhor dizendo, o celular), não consigo fugir do encantamento que, de repente, aquela garota me provocou.

Quando me dou conta, eu era quem a estava encarando. Ela parece perceber a situação e cora de leve. Isso é paquera, então? Nossos olhares se cruzam e se desviam por mais algumas vezes. Meu ponto está próximo. Sou tomado por tanta curiosidade em relação àquela garota que, simplesmente, não quero ser confrontado com a possibilidade de não vê-la de novo. Encontrei-a no mesmo ônibus duas vezes aquele dia. Era possível que já nos tivéssemos encontrado ali mais vezes, mas como eu iria saber? Poderia ser apenas uma feliz coincidência.

Insuflado de repentina coragem, aproximo-me dela. Digo oi e puxo conversa. Ela se mostra interessada. A três pontos da minha descida, posso descobrir que moramos e trabalhamos em locais próximos e já havíamos compartilhado o mesmo ônibus várias vezes. Eu nunca a havia notado antes, até esse dia. Até o momento pela manhã, em que tropecei nos seus tênis. Mas, principalmente, até essa volta para casa, em que esqueço o celular no trabalho e posso prestar atenção a ela. Talvez essa história tenha continuidade, e tem tudo para ter, pois marcamos um novo encontro no ônibus para o dia seguinte, pela manhã. Não sei como será, já que ando desacostumado a romances reais. Mas, confesso, estou louco para descobrir.

6 comentários:

  1. Gostei, você usou um tema que devemos realmente nos preocupar,até mesmo eu que
    sou de uma geração que para se conseguir um simples telefone era difícil, também uso
    o computador, tem momentos que preciso me policiar, um abraço e felicidade.

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    1. É verdade, hoje vivemos conectados. Temos tantos recursos ao nosso alcance que é preciso policiamento, para não deixarmos o virtual substituir o real.
      Um abraço.

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  2. Seu texto tem o humor do Ítalo Calvino! A tecnologia e o marketing acerca dela faz que nós nos sintamos culpados que não estar fazendo parte disso. Eu escrevi um poema sobre isso chamado "não é literatura": não sabemos mais viver sem intermédio de uma máquina, e até pra divulgar escrituras, o blog é a melhor forma de escrever. É uma infelicidade...

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    1. Ítalo Calvino... haha gostei =)
      Realmente, não sabemos mais viver sem uma máquina. É um mal necessário, mas vejo que tem tomado proporções enormes. Parece que a vida virtual tem se tornado mais interessante. Enfim... concordo com você, se não tivéssemos nossos meios virtuais de divulgar nossos escritos, quem iria nos ler (além das mães rsrs)?
      Ah, fiquei curiosa com o poema, vou lê-lo.
      Abraços.

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    2. Respondi lá e aqui também (EEE!):

      me parece que a maior parte dos problemas humanos está na falta de comunicação, a despeito da grande ânsia que existe em nos comunicarmos, e mais que isso, em reconhecermos semelhanças entre o "eu" e o "outro". Nesse sentido, eu também acho que as tecnologias de comunicação fazem um desfavor terrível: elas propiciam que evitemos a comunicação, propiciam uma informação rápida e fria. "Ele lê isso": pronto. Acabou a comunicação. Acho essa falta de intercâmbio uma tristeza.

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    3. Concordo com você, no sentido de que as tecnologias prestam um desfavor à comunicação: há uma grande ansiedade das pessoas em dizer algo, mas não necessariamente comunicar; o contato é rápido e frio, como você diz; e ainda tem a questão dos filtros, pois cada um faz interpretações a sua própria maneira. Não há realmente um intercâmbio, uma troca. Sobra ansiedade e narcisismo. Mas é um mal necessário (a tecnologia). Temos de saber dosá-la.

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