Moravam no mesmo condomínio. Em torres
diferentes, mas no mesmo condomínio. Ela, no 14º, ele no 16º andar. Se bem
observassem, veriam que, da cozinha dela, dava para ver um pouco da sala dele. Se
a cortina estivesse aberta. Aliás, quase sempre estava, era meio desligado o Igor.
Mas a Letícia nunca tinha visto a sala dele antes, pela janela de sua cozinha. Às
vezes até ficava na varanda da sala, olhando para o horizonte, sem mirar nada
específico. O apartamento do Igor nunca tinha lhe chamado a atenção.
Eram vizinhos, mas nunca tinham
se olhado. Nunca se cruzaram pela piscina do prédio, ou pela academia. Pelo
salão de jogos, pelos jardins do condomínio, pela garagem. Nem mesmo um oi
apressado nos elevadores, enquanto olhavam as telas de seus smartphones. Ou já
haviam se encontrado nessas situações? Nenhum dos dois tinha certeza. Talvez até
tivessem se esbarrado, mas nunca se notaram. Nunca! Para o encontro, precisaram
de uma ajudinha específica...
Da tecnologia. Sim, eram jovens,
modernos, conectados. Foi um aplicativo que proporcionou o encontro. Sem o
empurrão tecnológico, talvez continuassem sendo dois vizinhos desconhecidos. A vida
moderna é assim, não? São tantas atividades diárias, tanta correria, atribulação,
metas de trabalho, de saúde, de vida. Sobra pouco tempo para conhecer os
vizinhos. Se acaba o açúcar (opa, açúcar não foi um bom exemplo, olha as dietas
restritivas!), quem, hoje em dia, bate na porta do vizinho com uma xícara e alonga
o papo, sem pressa, como faziam nossos avós?
Foi ele quem a viu primeiro. Pelo
aplicativo, claro. Ficou interessado, era bonita, dizia gostar de grunge, como
ele. Morava perto. Muito perto! Eram vizinhos, seria possível? Se tudo
estivesse certo, ela morava no seu condomínio. Quanta coincidência! Ele resolveu
arriscar e a chamou. Ela viu sem acreditar. Um vizinho? Ficou receosa, parecia arriscado.
E se ele fosse um maníaco perseguidor? Decidiu ignorá-lo. Ele persistiu. Ela não
deu bola. Ficou assustada com a insistência e deu um tempo no aplicativo.
Ele não se deu por vencido. Eram vizinhos,
poderia forjar um encontro casual. E assim o fez. Por várias vezes esperou-a em
locais possíveis de encontrá-la ao acaso: na academia, na piscina, no pilotis. Mas
esses encontros casuais forçados nunca aconteciam. Quando já estava desistindo,
por fim, encontrou-a na portaria, aparentemente esperando uma carona, enquanto
ele saía para correr. Ele não acreditou. Ela pareceu reconhecê-lo de sua foto
no perfil e disfarçou. Ele não podia perder aquela chance. Chamou-a pelo nome e
se apresentou como o Igor, do aplicativo. Ela sorriu, um riso tímido, incrédulo
e resistente. Falaram amenidades, ela fingiu desinteresse e disse que sua
carona já ia chegar. Ele pediu que ela voltasse a usar o aplicativo, para
poderem conversar. Ela disse que não estava mais, que havia cansado daquilo. Ele
insistiu. Ela cedeu. Pelo aplicativo, se conheceram, se curtiram e engataram
uma relação que já dura quase um ano. Quem disse que a tecnologia não ajuda as
coisas? Quem disse que não pode surgir um romance sério por meio de um
aplicativo?
Quem disse? Eles diziam, mas a
história não era bem assim. Ensaiaram esse enredo e o repetiam à exaustão a
quem perguntasse. As pessoas se interessavam por essa versão da história. Dava-lhes
um pouco de esperança. Era uma história que dera certo em meio a milhares de
encontros de uma noite só, promovidos por aplicativos. Nem tudo estava perdido,
enfim. Quando incitados por interlocutores esperançosos e curiosos, eles sempre
aumentavam um detalhe aqui, outro ali, dando mais glamour ao seu romance
moderno de mentirinha. Porque não foi bem assim.
Viram-se, de verdade, pela
primeira vez, foi na fila da padaria. Sim, encontraram-se na fila do pão! Ele a
viu, disfarçou o nervosismo e engatou uma conversa. Descobriram-se vizinhos e
seguiram caminhando até o condomínio. A rápida caminhada foi agradável e resolveram
dar uma chance aos dois. Trocaram telefones, descobriram afinidades além da
localização geográfica, estreitaram a convivência e logo os dois apartamentos
no mesmo condomínio passaram a ter dimensões mais fluidas, confundindo-se. A cozinha
da Letícia passou a observar a sala do Igor e vice-versa. Já não eram mais dois
vizinhos desconhecidos.
Depois do segundo mês de
relacionamento, a Letícia apresentou o Igor à avó. Era bem moderninha a avó da
Letícia. Em nada lembrava aquelas vovós do nosso imaginário, com seus bordados
e gatos, a casa cheirando a café e bolo de fubá. Era uma vovó que estava em
todas as redes sociais, postava fotos de suas viagens pelo mundo e arrumava uns
cobertores de orelha por aí de vez em quando.
- Vocês se conhecem há muito
tempo, lá do prédio? – quis saber a avó da Letícia.
- Na verdade, a gente se conheceu
na padaria, por acaso. Nunca havíamos nos encontrado pelo condomínio – Letícia respondeu.
A avó olhou meio séria, meio
marota e soltou uma risada irônica.
- Vocês são demais. Quase acreditei.
Vão me dizer que se conheceram na fila do pão? Isso é tão... 1930! Podem falar
a verdade, sei que, no mínimo, se encontraram por algum aplicativo de paquera. Isso,
sim, é normal para a época de vocês.
E deu uma piscadela para os dois.
Letícia e Igor ficaram sem graça. Confirmaram a versão da avó. Parecia mais verossímil
que a real, da padaria. Aperfeiçoaram a versão moderna, do aplicativo, combinaram
detalhes e passaram a adotá-la para contar aos outros. E assim faziam desde
então. A história real, guardavam só para eles. Quem sabe, um dia, falariam do
quão difícil é encontrar a pessoa da sua vida na fila do pão.